E levar a sério o “levar a sério os eleitores”?

A única forma de não ser co-responsável pelo que um fascista venha a fazer é não votar nele. Melhor ainda, votar no seu adversário. Ainda estão a tempo.

Já levamos tempo suficiente desta vaga nacional-populista para saber que depois de um racista ou fascista ter tido um bom resultado eleitoral demora mais ou menos dois dias até alguém fazer a pergunta: achas mesmo que x por cento dos eleitores são racistas ou fascistas?

A pergunta parte do princípio que, em caso de resposta positiva, estaríamos a insultar um terço ou uma metade de uma nação. Ou então que, sendo impossível que um terço dos franceses seja racista ou metade dos brasileiros fascista, é também impossível que o candidato em que votaram o fosse — e assim durante muito tempo os candidatos acabavam branqueados por via do seu eleitorado.

Deixem-me contar-vos uma história. Como o Brasil foi a minha segunda casa durante muitos anos, poucas coisas me dão tanto prazer como ficar conversando com brasileiros sobre o Brasil. Na maior parte das vezes, de coisas banais: de onde vêm as suas famílias, de que estado são, em que cidades temos amigos em comum, a comida local, o futebol, etc. Nestes tempos que correm, porém, a política está sempre a espreitar. No outro dia entabulei conversa com um luso-brasileiro muito afável, de cerca dos seus sessenta anos. Na primeira parte da conversa ele disse-me, muito afavelmente, como tinha sido a sua vida na Beira Alta e no Rio de Janeiro. Na segunda parte da conversa disse-me, exatamente com a mesma afabilidade, que o erro da ditadura no Brasil tinha sido matar pouca gente. Sem uma alteração no tom de voz, explicou-me que “fuzilar duzentos ou trezentos mil já teria sido um começo”. Não foi preciso prolongar a conversa para saber em quem o senhor iria votar.

Quando pomos pessoas reais na resposta, as perguntas ficam mais complicadas. Se a pergunta for se aquele senhor acorda fascista, respira fascista e ronca fascista na cama, a resposta é: certamente que não. Se a pergunta for se aquele senhor é simpático e trata toda a gente à sua volta bem, eu juraria que a resposta será: certamente sim. Julga ele ter um único osso fascista no corpo? Provavelmente não. Mas se a pergunta for se ele, apesar de ser boa pessoa, é capaz de votar conscientemente num fascista, sabendo que é fascista, e talvez precisamente por ser fascista e não apesar disso, a resposta só pode ser: claro que sim. E o mesmo vale para milhões de eleitores. Todos os que votaram em Bolsonaro? É impossível saber. Mas mais impossível seria que de todos os eleitores que votaram em Bolsonaro não houvesse uma percentagem muito significativa de saudosistas da ditadura.

Muita gente que nos diz para “levar os eleitores a sério” só leva a sério o seu próprio conselho até ao ponto em que ele não se torna demasiado desconfortável. Os eleitores são para levar a sério até ao momento em que votam num fascista ou racista. Quando o fazem, é preciso haver uma justificação qualquer: é a ansiedade económica, ou a raiva contra o sistema, ou outra coisa qualquer.

O problema é que não levar os eleitores a sério significa desresponsabilizá-los. Significa dizer-lhes que terão sempre uma escapatória se tiverem de justificar um voto fascista. E significa desresponsabilizar o candidato também. Tal como o eleitor pode dizer “eu não achei que o Fulano falasse sério”, o candidato pode dizer “eu racista?! isso é insultuoso para os milhões de pessoas que votaram em mim”.

Não podemos entrar na alma das pessoas. Nunca saberemos o que elas pensam ou sentem da manhã à noite. Mas duas coisas têm de ser certas: temos de levar a sério o voto dos eleitores e os eleitores têm de levar a sério o seu voto.

Faz hoje oitenta anos que Hitler deu por finda a sua primeira agressão internacional, a da Checoslováquia. Por muito que nos custe, Hitler não foi eleito por extraterrestres, mas por eleitores comuns. Foi eleito prometendo que ia fazer o que fez. E invadiu a Checoslováquia com um papel assinado por outros políticos internacionais que acharam que ele iria ficar por ali.

Por alguma razão só se vota quando se é adulto. Porque quando se é adulto somos responsáveis pelos nossos atos. Levar a sério os eleitores não significa concordar sempre com eles, ou procurar sempre uma desculpa para a maneira como votam — isso é precisamente o contrário de levar a sério. Mas levar a sério significa sempre responsabilizar as pessoas pelos seus atos. Principalmente quando votam em políticos sabendo aquilo em que estão a votar.

Houve uma dezena de candidatos nas eleições brasileiras, da esquerda à direita, do PT ao antipetismo — e um fascista. Milhões de eleitores escolheram não votar nos outros dez, mas votaram em primeiro lugar no fascista. Desresponsabilizá-los é o pior serviço que lhes podemos fazer a três semanas da decisão final. Pelo contrário, precisamos de lhes dizer: a única forma de não ser co-responsável pelo que um fascista venha a fazer é não votar nele. Melhor ainda, votar no seu adversário. Ainda estão a tempo.

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