O dever de ingratidão

O sistema de nomeação e exoneração política do PGR ainda envergonha o nosso Estado de Direito.

A autonomia e a objectividade, no vocabulário que dá identidade ao Ministério Público, correspondem à independência e imparcialidade da magistratura judicial. O Ministério Público também é portador dos valores da jurisdição.

Trata-se de uma magistratura, paralela, é certo, à magistratura judicial, mas dela independente, por ser órgão judiciário com poderes de iniciativa e promoção e cujo aparecimento serviu para descorporativizar o sistema judicial. É inútil ter um juiz independente na jurisdição penal se não existir um órgão também independente que lhe requer a aplicação da lei penal de modo igual para todos.

Mas para ser considerado como autoridade judiciária independente não basta o nomen. É necessário o concurso de um conjunto de características que assegurem a distinção.

Para ser uma magistratura credível no cumprimento das suas atribuições, constitucionais e legais, e para assegurar o acesso imparcial à justiça, tem que recusar qualquer ponto de equilíbrio ou de dependência em relação ao poder executivo (os dois pilares – Governo e Presidente da República) e em relação ao poder legislativo.

Garantir a distância efectiva em relação ao poder político é condição para se exigir ao Ministério Público responsabilidade e prestação de contas e é condição indispensável para se conquistar confiança na justiça, tratar de igual modo todos os cidadãos aos olhos da lei democrática e preservar vínculos sociais. O Ministério Público apenas deve fidelidade à democracia, lealdade à Constituição e ao Direito e serviço aos cidadãos.

Essas garantias exigem a revisão urgente do modelo de nomeação e de exoneração do PGR, sob pena de se continuar a fragilizar a identidade do Ministério Público e a fazê-lo assentar numa independência ilusória. Um modelo de dependência política, qualquer que seja a sua intensidade e modelo, constitui uma visão ultrapassada do Estado contrária à concepção actual de um Estado de Direito constitucional e democrático de Direito.

No quadro conformador do Conselho da Europa para um Ministério Público independente, quer através das recomendações do Conselho Consultivo dos Procuradores Europeus, quer através das opiniões e relatórios da Comissão de Veneza (Comissão Europeia para a Democracia através do Direito), as garantias de imparcialidade são condições fundamentais para uma defesa efectiva dos direitos e liberdades individuais, e elas resultam de uma independência máxima, livre de influências, pressões, ameaças ou ingerências, directas ou indirectas, qualquer que seja a sua proveniência e quaisquer que sejam as suas razões. O mesmo quadro de conformação institucional de independência inspira os critérios de Copenhaga no âmbito da UE.

No que agora nos ocupa, a jurisprudência do TJUE, a propósito da natureza de órgão jurisdicional, no caso Pilato, precisa, quanto à independência e imparcialidade dos órgãos judiciários, que as garantias exigíveis devem postular a existência de regras, designadamente no que respeita à nomeação, à duração das funções e de destituição dos seus membros, que permitam afastar qualquer dúvida legítima quanto à impermeabilidade do referido órgão relativamente a elementos externos.

No seu Relatório de 2010, adoptado na 85.ª sessão plenária, a Comissão de Veneza acentuou que o regime de nomeação do procurador-geral e dos demais procuradores é um factor decisivo para garantir a independência do Ministério Público. O método de selecção do procurador-geral, a garantia da não politização dessa nomeação e a estabilidade institucional do lugar (que não deve coincidir com legislaturas, não deve ser provisório, nem renovável) condicionam todo o funcionamento do Ministério Público e a existência efectiva de garantias práticas dessa sua independência. Essa nomeação deve garantir confiança pública, respeito dos actores judiciários e das profissões jurídicas.

Se olharmos para o modelo de garantias constante do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, os parâmetros mínimos de máxima independência do Procurador-Geral Europeu estão aí consagrados de harmonia com esses cânones.

Se a independência do poder judicial não é uma opção, mas uma obrigação, não basta dizer que assim deve ser, não basta que assim deva parecer, nem basta que a independência fique sujeita a um regime de prova. É preciso que existam garantias efectivas na Constituição que consagrem essa independência. Porém, essas garantias não existem, como a recente politização e – pior – a partidarização da sucessão do PGR evidenciou e ilustrou abundantemente.

A opção política em entender o comando constitucional da duração do mandato do PGR como único não é nem uma surpresa, nem um favor ao Ministério Público, nem uma novidade na salvaguarda do lugar institucional do Ministério Público. Segue o aparente propósito de dar estabilidade ao cargo e de o isentar de pressões ilegítimas externas, semelhante ao que se defende para os demais magistrados que o integram.

O que não está bem é o regime de proposta e nomeação e, principalmente, a eventualidade da proposta de exoneração e a decisão de exoneração pelos mesmos atores políticos que têm a responsabilidade de propor e nomear, ainda que aceitem que o mandato é único. Mesmo único, ele estará sempre a prazo.

Afirmar a independência do Ministério Público num quadro constitucional que faz depender a nomeação de um PGR de um encontro de vontades politicas que pode ocorrer à mesa de um café ou no intervalo de uma tarde de praia para depois ser encenado em modos apropriados à salvaguarda das aparências democráticas não respeita o lugar institucional do Ministério Público e a sua independência. Por seu turno, o regime de exoneração do PGR, por motivos também eminentemente políticos (não há um elenco de causas de exoneração), não presta um bom serviço ao Estado de Direito democrático e exige um esforço de legitimação pela prática que não tem garantias tipificadas na Constituição para que o mandato seja exercido ao abrigo de quaisquer pressões.

O regime de nomeação e de exoneração confere ao PGR um perfil politicamente frágil e fragilizável. A contaminação política a esse nível de importância para a personalização do cargo arrisca o lugar à suspeita e ao descrédito. Uma de duas coisas está mal ou está por acidente na Constituição: ou é a autonomia do Ministério Público ou é o regime político-constitucional de nomeação e de exoneração do PGR.

Estranho é que os mesmos atores políticos façam juras de uma coisa e de outra, como se a contradição pudesse gerar alguma síntese com propósito.

Se propósito existe ele só pode ser assumido pelo PGR na exacta medida em que demonstre independência e legitimação pelo exercício.

A exacta percepção da independência do Ministério Público exige que a personalidade que assuma o cargo deva ser determinante para o seu exercício, apesar do quadro constitucional que o legitima.

Para isso, não deve ouvir as directivas ou recados políticos sobre as expectativas da sua actuação, como as que se ouviram por ocasião do processo mediático da sua substituição. As leis da república, sejam as leis de política criminal, sejam todas as outras, são o único guião possível e admissível.

O sistema de nomeação e exoneração política do PGR ainda envergonha o nosso Estado de Direito democrático assente na separação de poderes. Enquanto não for banido, o dever de qualquer PGR que seja empossado deve ser o de proclamar o “dever de ingratidão” em relação a quem propõe e nomeia e em relação a quem tem o poder de propor a exoneração e de exonerar.

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