O suicídio político de Haddad

Haddad perdeu toda a margem de manobra para confederar as demais candidaturas contra Bolsonaro, mesmo que o espaço fosse já curto, ante as enormes diferenças entre elas.

Já aqui no PÚBLICO, por duas vezes, me pronunciei sobre Bolsonaro: uma para, usando as suas próprias palavras, que me limitei a transcrever, provar que ele é, de entre outros atributos, um fascista e um antidemocrata primário, e uma outra para reflectir sobre as consequências do suposto crime de que foi vítima (digo “suposto” por ainda não haver decisão transitada em julgado e não por qualquer processo de intenções ou teses conspiratórias).

Como previsível, o candidato de extrema-direita ganhou com cerca de 17% de diferença para Haddad, mostrando um país dividido entre petistas e anti-petistas, mesmo geograficamente. O candidato a vice-presidente de Bolsonaro disse alto e bom som que esta seria a última oportunidade de os brasileiros votarem se o capitão na reserva for eleito Presidente. Isso mesmo. O impressionante nesta dupla é que ela diz claramente ao que vem: restaurar a ditadura militar, instituir um regime autoritário de controlo da criminalidade, encontrar nas minorias bodes-expiatórias para todos os males do Brasil, favorecer os grandes grupos económicos e as famílias poderosas que, pressurosamente, de jeito claro ou implícito, lhe vão declarando o apoio. Ninguém pode dizer que não sabe no que está a votar. Honra seja feita ao mártir da campanha mais polarizada na História recente do país.

Alguns têm dito que ninguém, sobretudo os Portugueses, têm nada que ver com o que se passa do outro lado do Atlântico. Enganam-se redondamente. Aqui, em terras lusas, ainda vivemos em liberdade e, por isso, podemos opinar sobre o que desejarmos. Mais ainda quanto a uma nação com o qual partilhamos longa História e um importante parceiro comercial, terra de muitos compatriotas nossos, para além de termos cá uma grande comunidade de brasileiros. Comunidade essa que, ao que se lê nas notícias, votou maioritariamente em Bolsonaro. As análises estão feitas há muito. Claro que muita gente do PT é corrupta. Claro que a colagem de Haddad a Lula é um suicídio político e ontem foi oferecido de bandeja a Bolsonaro o lugar no Palácio do Planalto. Então Haddad, por certo não podendo demarcar-se totalmente do legado do PT, vai logo a correr ter com um Lula preso por corrupção, de entre outros delitos, para, qual beija-mão, receber ordens, qual animal amestrado, sobre como conduzir a campanha para a segunda volta? Bolsonaro e os seus coronéis devem ter rejubilado ante tamanha estupidez política.

Haddad perdeu toda a margem de manobra para confederar as demais candidaturas contra Bolsonaro, mesmo que o espaço fosse já curto, ante as enormes diferenças entre elas. Deste modo, aniquilou-as. Os votos que tiver serão os da primeira volta e dos democratas que votarão em si como cá aconteceu com Soares, em quem os comunistas votaram sob conselho de Cunhal, “tapando a cara” do candidato no boletim de voto.

Desenganem-se os que crêem que Bolsonaro terá freios e contrafreios. O sistema brasileiro não é, neste ponto infelizmente, como o dos EUA. Os militares controlam o candidato de extrema-direita e governarão através dele. Não julgo que venham para a rua, excepto para as acções de limpeza dos bandidos que, já se sabe, só são bons quando mortos e enterrados. Com bancadas cada vez maiores dos representantes do direito de uso e porte de arma generalizado, dos fazendeiros e dos evangélicos, o Brasil só será governável com mão de ferro. E isso mesmo é dito pela campanha de Bolsonaro. O caldo sócio-económico, cultural e ideológico é tão complexo que se quer fazer crer que é essencial um reset ao Brasil para que este se torne um país que se respeite e, assim, ganhe o respeito dos demais.

A influência deste Estado no espaço regional em que se insere permite antever um futuro mais difícil para o Mercosul, uma política económica proteccionista, à semelhança de Trump, e uma aliança entre os dois homens. Os efeitos deste populismo em países vizinhos são desconhecidos. Lembre-se a Venezuela que, neste momento, tendo Maduro as Forças Armadas controladas, mas um povo com fome e revoltado, pode acabar por ser deposto e substituído por um militar de extrema-direita. O Brasil será um balão de ensaio para um retorno a tempos não muito recuados na América Latina. As ditaduras, de direita ou de esquerda, são sempre um monumental retrocesso civilizacional e o risco de contágio não é desprezível.

Donde, mesmo que me pareça que Bolsonaro já ganhou, mesmo que Haddad seja o menos mau – e isso há que dizê-lo claramente, pois apesar de provir de um partido corrupto, não consta que vá suspender a democracia –, é essencial que todos aqueles que amam o “pior sistema de governo depois de todos os outros” se ergam e procurem dizer aos nossos irmãos brasileiros, sem qualquer paternalismo, que a História aí está para demonstrar onde esta senda conduz. Dir-me-ão que quanto mais apelarmos ao voto contra Bolsonaro, mais os seus eleitores serão conduzidos por uma fortíssima campanha, sobretudo nas redes sociais, a pensar “o nosso líder incomoda mesmo muita gente que até estes tugas neocolonialistas estão contra ele”, o que será um tiro no pé.

Qual é a alternativa? Ficar calado perante a visão do abismo? Não. Quanto mais não seja para memória futura. Veremos, caso Bolsonaro ganhe, como irão o governo português e dos demais países da CPLP reagir. É evidente que terão de respeitar o que, em consciência, os brasileiros escolherem, mas perante concretas medidas antidemocráticas, este será mais um teste de resistência a esta Comunidade que, na verdade, aceitou já no seu seio um Estado campeão da democracia e dos direitos humanos como a Guiné Equatorial…

Sugerir correcção
Ler 9 comentários