Mais de 200 artistas plásticos escrevem ao primeiro-ministro: "Perdeu-se uma geração de artistas"

Signatários, entre os quais figuram alguns dos mais importantes artistas nacionais como Julião Sarmento ou João Cutileiro, defendem criação de colecção de arte portuguesa contemporânea e criação de agência independente da DGArtes.

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Exposição no Museu Museu de Arte Contemporânea do Chiado, obra da dupla Sara & Andre Enric Vives-Rubio

Alguns dos maiores artistas plásticos portugueses assinaram uma carta que transformaram em “documento histórico” devidamente emoldurado que vão entregar quarta-feira ao primeiro-ministro para denunciar como a crise dos últimos anos “destruiu” o mercado da arte e causou a perda de “uma geração de artistas”. “O Estado ao longo dos anos alheou-se das suas responsabilidades”, apontam Jorge Molder, João Cutileiro, Julião Sarmento ou Fernanda Fragateiro, parte do grupo de mais de 200 artistas que reivindicam a criação de um fundo estatal para aquisições e a criação de uma agência para a arte contemporânea independente da Direcção-Geral das Artes. A situação “chegou ao ponto da necessidade de acção humanitária”.

“O resultado desta crónica inoperância é a impossibilidade de ver hoje, em Lisboa ou no Porto, o que é a produção artística contemporânea em Portugal. Esse lugar e essa colecção não existem”, queixam-se os artistas que assinam a missiva.

É uma longa carta que passa em revista o estado da arte em Portugal, da crise da crítica à atenção dada pelos média às artes plásticas, passando por questões fiscais e apelos à acção do Estado. Endereçada a António Costa, será entregue quarta-feira pelas 18h na residência oficial do primeiro-ministro impressa em papel de 150x150 cm, emoldurada em forma de cruz em fundo negro. É subscrita por alguns dos mais relevantes nomes das várias gerações de artistas plásticos portugueses em actividade: Rui Chafes, José Pedro Croft, Ana Vidigal, Paulo Nozolino, Adriana Molder, João Pedro Vale, Nuno Alexandre Ferreira, Ana Perez-Quiroga, João Queiroz, Albuquerque Mendes, José de Guimarães ou Sofia Areal.

É uma tomada de posição “sem precedentes” com várias gerações de artistas plásticos representados nesta carta, reconhece a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva. “Não me lembro de nada parecido. Leio a carta com muito agrado e plena concordância.”

Na carta, o papel do Estado é posto em causa a vários níveis: “a colecção da Secretaria de Estado da Cultura/Instituto das Artes estagnou há mais de 15 [anos]", denunciam os artistas plásticos, que a classificam como um “bom mau exemplo” de como a produção artística dos últimos 40 anos está agregada em colecções “sem estratégia a médio e longo prazo”. E os artistas defendem “um programa”: “fundar uma colecção de arte portuguesa contemporânea consequente para gerações futuras e um local, ou vários, onde pudesse ser visitada de forma permanente, como acontece nas outras capitais da Europa”. Sobre a Lei do Mecenato Cultural, defendem que “nunca funcionou de forma correcta” pela sua complexidade e falta de aplicação.

Apontando a mira ao trabalho da  DGArtes, os signatários lembram o que consideram um “erro” original de junção nessa estrutura  das artes visuais e do espectáculo após a fusão “catastrófica” do Instituto de Arte Contemporânea e do Instituto Português das Artes do Espectáculo. Por isso mesmo, os artistas signatários recordam ainda a polémica do início do ano em torno do novo modelo de apoio às artes, que levou artistas de vários sectores para as ruas mas que contou com parca participação dos artistas plásticos. Pedem agora “um fundo fechado para aquisições e de um organismo (Agência para a Arte Contemporânea) regulador de apoios a projectos, bolsas, publicações, internacionalização, Bienal de Veneza, etc...”. Na carta, considera-se “urgente que o Estado reveja o regime do IRS, o da Segurança Social bem como o dos cuidados de saúde de trabalhadores que não vão beneficiar de reforma”.

Geração perdida

“Com a crise dos últimos anos perdeu-se uma geração de artistas — ou terão os artistas de continuar a emigrar por falta de solução, nem vinda do Estado, nem do mercado?”, encetam os signatários, denunciando que “o mercado da arte em Portugal é uma falácia” na ausência de “estratégia cultural”. Galerias sem capacidade económica, feiras com “pouca consequência artística” como a ArcoLisboa, escassez de coleccionadores com espólios regularmente actualizados e estruturados a comprar de facto em Portugal ou de mecenas entre os “cinco ou seis milionários com capacidade para intervenção relevante no mercado” são alguns dos diagnósticos dos artistas. Que declaram a situação do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado “comatosa” e exemplo de má gestão da instituição pública.

O tema da crise, encetada em 2008, trespassa a carta-denúncia, que recorda como as mais importantes instituições que adquirem arte contemporânea portuguesa – e elencam CGD-Culturgest, CCB/Berardo e FLAD-Fundação Luso Americana Para o Desenvolvimento — “não compram há pelo menos dez anos”, com a Fundação Serralves ou o MAAT e EDP a fazer compras com baixo orçamento e “critérios por vezes questionáveis”, lamentam. Sobre as colecções da banca, lamentam ainda que estejam “por resolver os imbróglios da Colecção Berardo, Miró/BPN e Banco Privado/Ellipse Foundation e BESArt” assim longe do público.

A carta termina com um apelo a “uma estratégia cultural que conte com a visão e uma real participação dos artistas (mais do que com burocratas), que acorde o mercado e que realmente vise uma efectiva difusão nacional e internacional da arte portuguesa” e manifesta a urgência de pôr fim ao que consideram ser “o Estado de amnésia e de vazio culturais” porque, rematam, “não se pode continuar a fechar os olhos à arte contemporânea”. 

O escultor José Pedro Croft afirma ao PÚBLICO que “este diagnóstico tremendo” não foi feito com nenhuma urgência: é uma tomada de posição “feita com mais tristeza do que esperança”.“Há cinco, seis ou dez artistas que conseguem expor fora de Portugal e fica tudo contente, mas isso não pode ser. Pessoalmente não me sinto maltratado, mas é o país que está em causa”, acrescenta Croft, que representou Portugal na Bienal de Arte de Veneza em 2017 e vai ter uma exposição numa galeria de São Paulo em Novembro.

“Eu faço parte das colecções públicas com obras produzidas há dez anos e depois tenho obras em colecções privadas, mas há muitos criadores mais novos que não fazem parte. Portanto não existem.” Este é um “mal-estar”, acrescenta, de décadas: “E todos os governos prometem que vão alterar as políticas culturais em relação às artes plásticas, mas nada acontece.”

Também a artista plástica Luísa Cunha explica ao PÚBLICO que subscreveu a carta "em nome dos artistas mais jovens, para exigir, tanto quanto possível, uma política cultural diferente e mais dirigida à arte contemporânea". Preocupa-se com a subsistência dos jovens artistas, com a instabilidade do mercado e considera que a constituição de um fundo de aquisições é das reivindicações mais urgentes que constam desta invectiva ao Governo - "a arte deve continuar a ser exposta, os acervos têm de ser continuados".

Se Raquel Henriques da Silva concorda que não há apoios para a arte contemporânea que se traduzam na aquisição de obras de arte pelo Estado central – embora possa haver alguma coisa através da Fundações de Serralves e de algumas câmaras como a de Lisboa –, discorda de algumas soluções apresentadas pela carta, tendo dúvidas sobre se a gestão de uma colecção de arte deva ser feita fora dos museus de arte contemporânea, como já foi feito no passado com as colecções da Secretaria de Estado da Cultura e do antigo Instituto de Arte Contemporânea (IAC).

Sara Bichão, uma artista formada nos primeiros anos do século XXI, uma representante dos artistas mais jovens, diz que é preciso haver um enquadramento profissional dos artistas, sendo a existência de colecções públicas apenas um dos aspectos, porque o enquadramento fiscal e a Segurança Social “estão profundamente desadequados dos ritmos e fragilidades do trabalho artístico”. “Isso para que volte a fazer sentido existir uma Faculdade de Belas-Artes. É absurda a realidade de uma faculdade que não tem no país a estrutura para enquadrar licenciaturas, mestrados ou doutoramentos. Há que criar um valor cá dentro de forma a que ele seja real e defendido quando os nossos artistas vão para o estrangeiro. Para que Portugal seja uma potência, isso implica que a produção nacional seja um facto compreendido e respeitado pelo próprio país. É uma urgência à priori e não uma vanglória à posteriori.”

Cuidar do património futuro

Sublinhando que nunca houve tantos artistas a subscrever um documento deste tipo, Pedro Portugal defende que um dos problemas do sector tem sido precisamente a sua incapacidade de se organizar e de constituir um interlocutor legitimado para discutir com o Governo. Uma circunstância cujas consequências ainda recentemente teriam ficado bem à vista na polémica em torno dos concursos da DGArtes, com os artistas visuais a mostrarem-se incapazes de ter a mesma eficácia reivindicativa de sectores dotados de associações representativas, como o teatro ou a dança.

Um dos fundadores do Movimento Homeostético, que lançou na primeira metade dos anos 80 com Manuel João Vieira e vários artistas que também assinam esta carta, como Pedro Proença, Xana ou Ivo Pereira da Silva, Pedro Portugal diz que a situação é “catastrófica” e garante que há artistas de 30 e 40 anos que nunca venderam nada.

Resumindo os principais objectivos da carta, Pedro Portugal defende que a arte contemporânea tem de sair da DGArtes e voltar a ter uma estrutura específica, como o foi o extinto Instituto de Arte Contemporânea (IAC), e propõe a criação de um fundo para aquisições públicas de obras de arte contemporânea, não apenas porque os artistas precisam de vender obras, mas porque as colecções só fazem sentido se perdurarem no tempo. E dá o exemplo do Museu do Chiado, que se assume como museu de arte contemporânea, mas cujo acervo perde consistência a partir de 1970, tornando-se, diz, uma colecção “errática”, dependente de doações, empréstimos ou depósitos.

O artista e curador Paulo Mendes, outro subscritor da carta, lamenta que todos concordem que “é preciso defender o património”, mas não se preocupem com o facto de “o Estado não cuidar dos criadores vivos, que estão a criar o património do futuro”. E defende que, a exemplo do que se faz em vários países europeus, o Estado deve criar uma estrutura que tenha a obrigação de apoiar os artistas e que vá formando um acervo que forneça ao público uma visão do que é a criação contemporânea do país, um órgão cujos curadores “deveriam ser substituídos regularmente”, argumenta, para assegurar diversidade de gostos e a presença das diferentes gerações de artistas.

É esse acervo, capaz de “caracterizar o nosso tempo em termos estéticos e conceptuais”, de “constituir uma memória do país”, que não existe, observa Paulo Mendes. “O que há são pequenos episódios de coleccionismo do Estado e museu cujos acervos têm buracos enormes do ponto de vista histórico”, diz. “Não temos neste momento aberto ao público um sítio que mostre um panorama relevante do que foi a criação artística portuguesa do final do século XIX até ao presente, e se quisermos mostrar a um estrangeiro o que aqui se produziu nos últimos 25 anos, não é fácil, não temos onde o levar".  

Pedro Calapez diz que a carta faz “uma descrição sobre a situação das artes plásticas em Portugal que corresponde à realidade” e salienta a sua proposta de que haja um investimento nas colecções do Estado. “As colecções públicas seguem muito pouco os artistas. Sabemos que em muitos sectores portugueses existem dificuldades – não há dinheiro –, mas não acho que por causa disso os artistas não possam ter uma opinião sobre a sua situação”, defende o artista. “A minha situação pessoal é igual à de outros artistas da minha geração: as colecções públicas têm trabalhos antigos mas não asseguram uma continuidade de representação.”

Calapez é o autor da pintura em frente à qual o primeiro-ministro passará nos próximos tempos a falar ao país, que foi emprestada a São Bento pelo coleccionador António Cachola durante um ano. Exposta na sala principal da Residência de São Bento desde o dia 5 de Outubro, juntamente com outras obras escolhidas no âmbito da iniciativa Arte em São Bento – Colecção António Cachola 2018, que partiu da vontade de António Costa de ter arte portuguesa mais actual no ambiente em que trabalha e recebe os seus convidados, a pintura de Calapez foi precisamente colocada no local onde o chefe do Governo costuma ser filmado nas suas intervenções ao país.

Em São Bento, quaisquer declarações sobre a carta foram adiadas para esta quarta-feira ao fim da tarde, depois de um grupo de artistas a ter feito chegar em mão à residência oficial do primeiro-ministro (a entrega está marcada para as 18h). Na quarta-feira, entre a dezena de artistas que entregará a carta a Costa ao final da tarde, deverão estar Vítor Pomar, José de Guimarães, Pedro Proença, Alexandre Conefrey, a dupla Sara&André, entre outros. 

Contactado pelo PÚBLICO, o gabinete do ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, preferiu não comentar esta iniciativa dos artistas – nem o diagnóstico que a carta faz, nem o facto de ter sido directamente endereçada ao chefe de Governo e não ao titular da pasta.

com Lucinda Canelas

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