Kavanaugh e a eleição ou nomeação de juízes

Equal justice under law – é esta a inscrição no frontispício do edifício do Supremo Tribunal Federal norte-americano que, para além de instância de recurso em processos que em Portugal seriam da competência dos tribunais judicias, desempenha as funções do nosso Constitucional. A recente confirmação da nomeação de Kavanaugh coloca em destaque o modo de provimento dos magistrados naquele país.

Em regra, os juízes são eleitos ou nomeados, o que lhes confere uma legitimidade democrática directa. Todavia, este é um sistema que, em minha opinião, tem muito mais inconvenientes que vantagens. Quem se apresenta ao voto popular escolhe uma agenda política que julga ir ao encontro dos anseios dos eleitores. Não é por acaso que o direito penal dos EUA é o mais punitivo do mundo democrático, com os mais elevados níveis de encarceramento e uma sobre-representação das minorias raciais e étnicas nas prisões. Se a justiça nunca é totalmente igual para todos, na medida em que pode depender da qualidade da defesa do arguido – que se paga, e bem, em muitos casos –, ela é menos igual quando os juízes amiúde entendem que a população que vão servir deseja uma concepção ético-retributiva das penas, naquilo que designamos por punitive turn e que remonta à governação Reagan.

As coisas só não são mais graves porquanto a maior parte dos processos civis e penais são decididos – quanto à questão de fundo – pelo júri, de que a História nos vem ensinando a desconfiar, por serem os jurados muito mais permeáveis às influências e à retórica de mandatários mais inspirados. O mesmo se diga do sistema dos public prosecutors, também eles sujeitos a eleição e em que a regra imperante é a do princípio da oportunidade, ou seja, a notícia de um crime pode ou não dar lugar à abertura de uma investigação, dependendo de se tal for julgado prioritário pelo “cardápio” de opções político-criminais daquele concreto representante. Algo oposto ao nosso princípio da legalidade, em que a aquisição da notícia de um delito importa sempre, salvo casos espúrios, a abertura de inquérito.

Os juízes ou o que entre nós são magistrados do Ministério Público não devem ser eleitos, pela especificidade do poder judicial e dos Tribunais no seu conjunto, órgão de soberania. Para além da tecnicidade das suas funções, que não encontra paralelo nos demais, é essencial garantir a sua independência e imparcialidade, mesmo do Povo. Ou seja, a legitimidade democrática indirecta que existe entre nós e na generalidade dos Estados que integram a mesma família de Direito – romano-germânica – é suficiente e o melhor garante para esse equilíbrio. Os juízes e os procuradores são providos por concurso público, apenas e exclusivamente baseado no seu mérito, progredindo em função do tempo de serviço, das vagas existentes e do resultado das inspecções judiciais. E isto em toda a hierarquia dos tribunais judiciais, aqueles que mais de perto lidam com a nossa realidade quotidiana. O mesmo sucede com os tribunais administrativos e fiscais e aí com a vantagem de serem totalmente independentes do Estado, por julgarem acções em que os entes públicos aparecem, muitas vezes, como réus.

O Tribunal Constitucional é composto por juízes eleitos pela Assembleia da República e outros cooptados entre estes. É muito discutível este modo de nomeação, pois pode sempre ficar a ideia de uma certa “lealdade” de um conselheiro em relação ao partido que o indica. Entendo, por isso, que, não obstante o sistema ter vindo a provar bem, na generalidade dos casos, razões não existem para que os juízes do Constitucional não sejam providos por concurso público de entre magistrados judiciais e do Ministério Público e outros juristas de mérito, perante um júri isento e imparcial, com representação de todas as profissões judiciárias e com um elemento indicado pelo Presidente da República e um outro pelo Parlamento, mas em que quem lida com a administração da justiça em todas as suas vestes esteja em maioria. Matéria que dependeria de revisão constitucional. Se poderia configurar-se uma secção dentro do Supremo Tribunal de Justiça ou uma ordem jurisdicional própria, como hoje, é questão que tenho por menos relevante. Falta apenas, creio, este passo para nenhuma dúvida existir sobre a independência dos nossos tribunais em relação aos demais órgãos de soberania.

Obviamente que Kavanaugh terá sempre o seu percurso manchado pelas acusações de que foi alvo. Goza da presunção de inocência, mas não ter aceitado uma investigação autónoma pelo FBI em nada abona a seu favor. Trump consegue o pretendido: um Supremo conservador que lhe faça os jeitos em matéria de costumes e liberdades cívicas, mas sobretudo em controlo de normas com incidência orçamental e fiscal. Essa é a sua grande motivação. E tantas são as propostas – desde logo a construção do muro da vergonha – que chocam com a Constituição que esta é uma peça de xadrez valiosíssima. Mesmo que a custo de um anátema que se manterá qual nódoa empedernida e de um depoimento de uma alegada vítima que deixou muitas dúvidas quanto ao perfil do agora Justice.

Tantas vezes em Portugal e na Europa continental se pretendem importar regimes da justiça norte-americana sob o manto respeitável da celeridade processual – plea bargaining, que não é o mesmo, mas aproxima-se dos “acordos de sentença”, que já se tentou implementar em Portugal e que são uma realidade na Alemanha, a colaboração premiada, a inversão do ónus da prova em que, na prática, o anterior Governo apostava com a criminalização do “enriquecimento ilícito” – que é bom recordar as profundas entorses aos mais básicos princípios do Estado de Direito a que se assiste por terras do Tio Sam.

Uma coisa – essa sim – temos de aprender com os norte-americanos: a Justiça é, como qualquer actividade do Estado, escrutinável, e tem de conviver com a crítica, mesmo que tantas vezes mal-informada (propositadamente ou não), o que reforça a urgência, tantas vezes falada, de uma verdadeira estratégia de comunicação dos Tribunais e da PGR. O Direito em acção não se compadece com termos que ninguém percebe, quando é fácil “trocar as coisas por miúdos”. Esse é um exercício de verdadeira cidadania e creio que ainda há alguns tiques do Estado Novo em administrar a Justiça como se se tratasse de um sacerdócio com ritos sagrados e só inteligíveis por uns poucos ungidos. Nada disso. A questão está muito a montante: na criação de uma disciplina de noções básicas de Direito e da organização do Estado no ensino obrigatório. Não sou mesmo nada defensor do regime de Salazar/Caetano, mas aí havia uma disciplina com um conteúdo próximo, obviamente ao serviço da propaganda. Extirpando-a desta última parte, só há educação cidadã e política se as pessoas conhecerem minimamente os seus direitos e o modo de os exercer. Quem tem medo de os ensinar universal e gratuitamente?

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