Prescrição de delito salva da cadeia médico espanhol que roubava bebés no franquismo

O ginecologista Eduardo Vela, actualmente com 85 anos, foi considerado culpado no caso das “crianças perdidas do franquismo”. Milhares de crianças foram roubadas e dadas para adopção ilegalmente durante décadas em Espanha.

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Inés Madrigal denunciou o médico em 2012, depois de suspeitar ser um dos "bebés roubados" do período franquista. Reuters/SERGIO PEREZ

O médico espanhol acusado de estar envolvido em centenas de adopções irregulares de crianças, que remontam aos anos da ditadura do general Francisco Franco, foi reconhecido como culpado, esta segunda-feira. Ainda assim, o veredicto foi outro: Eduardo Vela, actualmente com 85 anos, foi absolvido de todas as acusações devido à prescrição do delito.

Inés Madrigal, que em 1969 foi ilegalmente entregue a uma família adoptiva, e que denunciou Vela quase 50 anos depois, já disse que vai recorrer para o Supremo Tribunal.

O Tribunal Superior de Madrid (Audiência Nacional) decretou que o ginecologista Eduardo Vela, o primeiro a ser julgado no caso do “tráfico de bebés” durante o período do franquismo - e que se estendeu para lá da ditadura -, é culpado dos crimes de adopção ilegal, detenção ilegal e falsificação de documentos. O Ministério Público de Madrid pedia 11 anos de prisão, mas Vela foi absolvido pela prescrição do delito.

O médico negou as acusações em Junho, dizendo que nunca deu “nenhuma menina a ninguém”, descreve o jornal El Mundo. Vela respondeu à maioria das questões com “não me recordo”, e, quando confrontado com a certidão de nascença de Inés Madrigal, disse que não se tratava da sua assinatura. Respondeu ainda que “assinava documentos sem os ler”, que se ocupava apenas dos aspectos médicos dos nascimentos e que quem estava encarregue dos procedimentos administrativos eram as parteiras e assistentes sociais.

O antigo director da clínica de San Ramón, em Madrid, foi levado à justiça por Inés Madrigal, uma das muitas “crianças perdidas do franquismo”, em 2012. Como Madrigal atingiu a maioridade antes de Junho de 1987 e só o denunciou em 2012, o crime foi considerado como prescrito, já que se passaram mais de dez anos entre os acontecimentos.

O advogado de Madrigal, Guillermo Peña, defende que a prescrição não se aplicava ao caso, já que a sua cliente não sabia que tinha sido roubada até 2010, quando leu um artigo no El País sobre bebés roubados na clínica de San Ramón, onde nasceu, e começou a investigar. Segundo a sua mãe adoptiva, que morreu com 93 anos em 2016, o processo teria sido feito através de um padre amigo de Vela, que por sua vez assinou o certificado de nascimento de Inés, onde constava que era filha biológica dos seus pais adoptivos. Perante um teste de ADN, Inés concluiu que não era de facto filha de quem considerava os seus pais, pelo que decidiu denunciar o caso.

“Eu não sabia nada disto em 1987, mas o advogado de Vela mencionou a prescrição repetidamente durante o julgamento. O Tribunal de Madrid tinha estado sempre em oposição à prescrição”, sublinhou ao The Guardian.

Inés Madrigal, que descobriu que era adoptada quando tinha 18 anos, garante que vai recorrer ao Supremo Tribunal, não por querer bens monetários ou ver Vela atrás das grades, mas por considerar que “esta sentença pode ser um trampolim” para outros casos, e que apenas quer saber “mais sobre a sua origem”. Citada pelo El País, Madrigal disse que “é uma sensação agridoce”. “É inédito, é a primeira sentença no caso dos bebés roubados. Reconheceram que houve roubo, o que é um grande passo, mas não estamos de acordo [no veredicto]. O tribunal por um lado reconhece os feitos, mas por outro não toma uma posição”.

O primeiro de muitos

Cristina, uma mulher que estava no tribunal para apoiar Inés, e que foi vítima do roubo do seu recém-nascido, em 1984, mostrou-se desiludida: “É como levar um estalo. Temos de mudar estas leis para que a prescrição não possa ser aplicada a estes crimes”, disse à BBC.

Contudo, Inés reconhece que sempre considerou improvável que o julgamento lhe trouxesse respostas. “Não sou ingénua ao ponto de acreditar que Vela me dissesse quem é a minha mãe, ou em que circunstâncias fui retirada dela, mas gostava de ter acesso aos registos de todas as mulheres que deram à luz em San Ramón. No entanto, duvido que isso aconteça e tenho de encarar a realidade”, disse ao The  Guardian

A esperança de Inés, presidente da associação SOS Bebés Roubados na região de Múrcia e trabalhadora ferroviária, é que este seja o primeiro de muitos julgamentos no caso das “crianças perdidas do franquismo”. “Durante 60 anos fomos o ‘supermercado de bebés’ para a Europa”, bem como para países como os Estados Unidos, o México e o Chile.

A associação Anadir (Associação Nacional para as Vítimas de Adopção Irregular) estima que entre 1965 e 1990, 300 mil bebés tenham sido retirados a mães solteiras, pobres ou que tivessem convicções políticas opostas às do regime de Franco - republicanas -, normalmente sob o pretexto de que teriam morrido. As crianças eram depois entregues a famílias simpatizantes do regime, que fossem inférteis e “mais merecedoras” e que integravam uma lista de espera feita por padres e freiras. De acordo com a BBC, Vela disse que “sempre agiu sob o nome de Deus, sempre pelo bem das crianças e para proteger as mães”.

Eduardo Vela não é o único nome que salta à vista nas centenas de denúncias de crianças adoptadas que, como Inés Madrigal, começaram a suspeitar das circunstâncias da sua adopção, ou que quiseram saber mais sobre as suas origens e decidiram investigar. Até agora, apenas María Gómez Valbuena, conhecida em Espanha como “irmã Maria”, freira e assistente social na clínica de Santa Cristina e colaboradora em San Ramón, tinha sido acusada. Foi ouvida uma vez pelo juiz, mas morreu aos 88 anos, em 2013, sem revelar quaisquer dados sobre os recém-nascidos roubados.

Texto editado por Sofia Lorena

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