Maestro em casa, ouvintes em festa

Na primeira parte, a Canção do Destino (Schicksalslied), para coro e orquestra, de Johannes Brahms, sobre poema de Hölderlin; e na segunda parte, a Sinfonia n.º 1, em Ré maior, de Gustav Mahler.

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Lorenzo Viotti Márcia Lessa
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O primeiro programa de concerto de Lorenzo Viotti enquanto Maestro Titular da Orquestra Gulbenkian incluía, na primeira parte, a Canção do Destino (Schicksalslied), para coro e orquestra, de Johannes Brahms, sobre poema de Hölderlin; e na segunda parte, a Sinfonia n.º 1, em Ré maior (versão definitiva em quatro andamentos, ex-Titã), de Gustav Mahler. Como a Canção do Destino dura pouco mais de um quarto de hora, Viotti decidiu oferecer antes do intervalo, cantado a cappella, o quarto e último andamento do Concerto para Coro (1985) do compositor russo Alfred Schnittke (1934-1998), sobre texto do monge arménio S. Gregório de Narek (950-1003 d. C.). Embora essa extensão ao programa original estivesse na página em linha da Fundação Gulbenkian (aliás sem notas, texto completo e respectiva tradução), não foi disponibilizada ao público presente, como seria recomendável e profissionalmente expectável, uma adenda ao programa impresso, o que levou a alguma confusão na sala.

Na partitura de Brahms, o primeiro andamento, Adagio (Ihr wandelt droben im Licht...) engloba, depois de uma breve introdução orquestral, as duas estrofes iniciais, sobre os claros espíritos etéreos imaginados pelo poeta; o segundo andamento, Allegro (Doch uns ist gegeben...), baseada na terceira e última estrofe, introduz um forte contraste expressivo, não só no tempo bruscamente acelerado e na tonalidade (a relativa menor, face ao anterior Mi b maior) mas também na textura pesada e incisiva da primeira exposição do texto, que fala dos seres terrenos colhidos na sua dramática circunstância temporal. O compositor retoma então os primeiros dois versos desta estrofe (“Mas a nós não é dado em lugar algum repousar”) e repete-os pensativamente, antes de retomar o texto sobre a mortalidade, com sua escura energia (“Desaparecem, caem os seres sofredores, cegamente, de uma hora para o outra”). Contudo, Brahms interrogou-se durante anos sobre como fechar esta peça com os versos finais, emotivamente decadentes, “tal água de rocha /em rocha jorrada/ anos a fio na incerteza”. Resolveu-se finalmente por um poslúdio orquestral, Adagio, que acaba por restaurar, em dó maior, a confiança previamente abalada. Uma partitura deste jaez foi naturalmente apta para demonstrar a sensibilidade do maestro na gestão dos muitos cambiantes de temperatura emotiva e respectivo leque dinâmico, conseguindo um resultado simultaneamente tocante e poderoso, detalhadamente exacto, porém invariavelmente fluido, com perfeito entrosamento entre vozes e orquestra.

As peças seguintes parece terem sido escolhidas para evidenciar, separadamente, as enormes qualidades dos intérpretes. A partitura de Schnittke, Sej trud, shto natchinal ja s upavan’jem (“Termina este trabalho que eu comecei”), em clave mística, apaziguadora, de tradição ortodoxa, mostrou-nos o Coro Gulbenkian no seu melhor: arrojo e sobriedade na leitura, com dissonâncias calmamente saboreadas e consonâncias aveludadas em busca da maior fusão; capacidade de sustentar linhas claramente delineadas; fraseado sabiamente esculpido; consistência sonora dos naipes, baseados em vozes bem timbradas e treinadas para a convergência coral. Com toda a justiça, Viotti chamou ao palco o maestro do coro, Jorge Matta, para partilhar com ele, e os cantores, os longos aplausos do público. Diga-se de passagem que há pouco mais de quinze dias Jorge Matta e o Coro Gulbenkian tinham evidenciado essas mesmas qualidades no Panteão Nacional, num programa invulgarmente imaginativo em que polifonias do século XVI (de Victoria e Gesualdo) e obras contemporâneas (de Górecki, Pärt, Ešenvalds, Ligeti e Carrapatoso), cruzadas e cantadas do alto e em círculo, entre o público, alcançaram e produziram uma sintonia e um envolvimento mágicos.

Na segunda parte do concerto foi a vez de a Orquestra Gulbenkian ser posta à prova: de facto, nada melhor do que uma sinfonia de Mahler, com o seu infindável leque de combinações instrumentais e a sua múltipla exposição de partes solísticas, para evidenciar as capacidades colectivas e individuais de um conjunto orquestral. Se há pontos a melhorar, creio que só dois podem ser apontados: a concentração inicial de cada um dos músicos (tanto em Brahms como em Mahler houve ligeiríssimas, porém audíveis hesitações) e a fusão tímbrico-harmónica entre algumas linhas de carácter solístico, mormente nos primeiros compassos, quando os instrumentos de sopro estão ainda frios. Dito isto, a orquestra apresentou-se com grande brio, correspondendo às melhores expectativas tanto no entrosamento sonoro como nas prestações individuais. A direcção musical de Viotti, para além da evidente desenvoltura técnica na clareza do gesto e na atenção ao detalhe, foi plena de vitalidade e de imaginação. Destacaria, neste aspecto, o terceiro andamento (talvez o mais merecedor do epíteto “pós-romântico”), em que fez ressaltar a variedade das alusões mahlerianas, pinceladas naturalistas inseridas numa escrita de rigorosa base contrapontística, conseguindo calibrar e combinar diferentes tempos e acentuar contrastes de carácter, em justaposição ou sobreposição, com transições imperceptíveis, sobre a corda bamba de um andamento flexível gerido de forma virtuosística; o qual, nas mãos de um maestro menos dotado, teria provavelmente feito descambar a orquestra, e a imagem sonora por ela projectada, numa cacofonia. Parabéns, pois, a Lorenzo Viotti e àquele que é agora, como maestro titular, o seu admirável instrumento colectivo.

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