Santo Ronaldo e as prostitutas

O profundo machismo entranhado em extensas partes da população feminina vai demorar séculos a erradicar.

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Cristiano é o nosso Cristo. É uma fé, uma iluminação, um dogma. Nos tempos que correm, vale muito mais, em unidades de medida de êxtase patriótico, do que a bandeira, o hino, o 25 de Abril, o castelo de Guimarães e os descobrimentos. É o único herói consensual do presente, o exemplo da determinação e superação, o orgulho pátrio. Os portugueses já decretaram a santidade de Ronaldo e a culpa da alegada vítima. 

Se fosse a teoria da denegação a explicar as reacções de fé total em Ronaldo e insultos vis à mulher que o acusou — que estão em todo o lado —, talvez uma sessão de terapia de grupo envolvendo os dez milhões de portugueses resolvesse o assunto. 

Infelizmente, é de temer o pior. Uma semana depois de a Der Spiegel ter publicado uma investigação jornalisticamente irrepreensível (talvez muita gente tenha falado sem a ter lido), muitos intelectuais portugueses expuseram à luz do sol a sua cabeça cavernícola, habitualmente disfarçada por uns livros e umas citações, mas muito a fazer pendant com a cabeça do juiz da Relação do Porto autor do famoso acórdão da “sedução mútua”. 

Se Henrique Monteiro, ex-director do Expresso, manifestou que a queixosa, por ter aceitado subir a um quarto de hotel de um homem, “não é nenhuma santa”, Raquel Varela prontamente desqualificou a acusação de Mayorga por ela ser uma “prostituta”, o que não está provado em nenhuma parte do texto da Der Spiegel. Apesar de insistir que “a violação é um crime de enorme gravidade”, o ponto de argumentação de Varela é que Mayorga recebeu dinheiro e que ela, Varela, nunca recebeu dinheiro de “um homem com quem tivesse tido uma relação”: “Jamais andarei lado a lado numa manifestação ao lado destas tipas [sic].”

O problema com este discurso desta professora universitária é a reprodução fidelíssima, de uma forma maquilhada para o século XXI, da tese de que as “mulheres sérias” não podem ser vistas ao lado das prostitutas, sob pena de perderem o seu estatuto social. Se fosse só Raquel Varela a debitar estas alarvidades, estaríamos todos bem. Mas as redes sociais encheram-se nos últimos dias de mulheres (algumas intelectuais, como Teresa Rita Lopes, que refere “os azares de Ronaldo de que os seus advogados hão-de tratar"”) a reproduzirem ipsis  verbis o mesmo.

Varela recusa-se a misturar as “verdadeiras violações” com o caso “Ronaldo e a garota de programa”. A diabolização da queixosa não podia ser mais cruel. É por estar em causa Ronaldo, a nossa bandeira nacional? É mais complexo: o profundo machismo entranhado em extensas partes da população feminina vai demorar séculos a erradicar. 

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