“Deixei de me surpreender com os mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem”

Robert Vitalis é professor de relações internacionais e ciência política na University of Pennsylvania. Ao longo da sua carreira, dedicou-se à investigação das dimensões internacionais e globais das questões colonial e racial. Em 2015, publicou o aclamado White World Order, Black Power Politics: The Birth of American International Relations.

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No seu livro, de 2015, um dos grandes objectivos é compreender o nascimento das Relações Internacionais e da Ciência Política nos Estados Unidos da América. Contra a ortodoxia historiográfica de ambas as disciplinas, mostra como mundividências imperiais foram cruciais na formação de ambas as disciplinas e ao seu posterior desenvolvimento. Quais as principais causas e consequências desta história pouco conhecida?
Eu mostro como a história do império é apagada, mas também como os académicos das relações internacionais começaram, de modo activo e talvez inconscientemente, a construir uma história mais útil da sua disciplina durante a Guerra Fria. O que é verdade em relação a muitas disciplinas, na verdade, não apenas no caso das Relações Internacionais. A história diplomática, a história do “desenvolvimento” e a Sociologia são outros exemplos. Se, como os então líderes emergentes da disciplina insistiram, as Relações Internacionais só se tornaram uma disciplina “científica” nos anos 1940 e 50, através da promoção do “realismo” (uma vez que Realpolitik era então uma palavra má) e da construção dos Estados Unidos como um “poder do statu quo”, então não haveria nada mais a dizer sobre essas décadas pré-científicas anteriores. Como seria de esperar, os professores marcharam, mais ou menos, com o Departamento de Estado, a Casa Branca e outras agências do Governo, procurando refutar os argumentos do rival soviético e dos chamados “países não alinhados” sobre a natureza e a extensão do poder que os Estados Unidos exerciam globalmente.

Também demonstra que ocorreu um processo de “invisibilização do racismo”, apesar de as “relações internacionais significarem relações raciais”. Porque acha que isto aconteceu? Quais foram, e são, as consequências deste facto?
A realidade persistente da opressão dos afro-americanos na sua demanda por direitos iguais era o outro problema que fazia coxear o Governo americano na sua rivalidade com a União Soviética em relação aos corações e às mentes dos europeus, dos africanos e dos asiáticos. O racismo em casa complicava a diplomacia dessas décadas. O contexto da Guerra Fria ajuda a explicar os esforços das administrações em dessegregar os Estados do Sul no pós-guerra, como os trabalhos de vários historiadores têm demonstrado (Mary Dudziak, Penny von Eschen e Paul Gordon Lauren foram os mais proeminentes). Também aqui, uma história mais útil do passado começou a ser criada: do racismo como um atavismo e uma excepção ao que Gunner Myrdal identificou como o “credo americano” — roubando a ideia sem o dizer a Alain Locke, da Universidade Howard, já agora. Mais tarde, a escritora Toni Morrison escreveu sobre a tendência poderosa, na cultura do pós-guerra, de “silêncio e evasão” sobre o passado e o presente do racismo. Eu peguei na ideia e traduzia-a usando um termo em voga na teoria das relações internacionais nos anos 1990: descrevi-a como a “norma contra a detecção”.

Outro aspecto importante que sublinha tem que ver com o facto de a contribuição de académicos afro-americanos nessas disciplinas ser também desvalorizada ou omitida. Qual a razão? A realidade é hoje diferente?
Não há exemplo mais poderoso do silêncio e evasão do que a persistente ignorância sobre os académicos negros e as suas inovações intelectuais numa academia profundamente segregada. Só começa a mudar quando académicos negros são admitidos nas torres de marfim (brancas) nos EUA. O mesmo é verdade em relação às mulheres nas relações internacionais, e há agora trabalho a ser feito por Patricia Owens e outras pessoas no Reino Unido no sentido de identificar académicas influentes neste campo, mas que hoje estão completamente esquecidas.

Em alguns meios, a ideia de que os EUA eram essencialmente um poder anti-imperial e anticolonial persiste. É uma consideração sustentada na sua condição de antiga colónia e no facto de, mais tarde, ter sido uma das grandes potências que patrocinaram a descolonização. A história entre estes dois momentos perde-se, ou é desvalorizada. Pode falar-nos um pouco mais dessa história e de como condicionou o desenvolvimento de várias ciências sociais?
O saudoso e grande economista do MIT Morris Adelman — que é uma personagem central no livro que estou a escrever agora sobre os vários mitos que preocupam a esquerda anti-imperialista e a direita imperialista nos EUA — disse uma vez que “o senso comum sabe muitas coisas que não são verdade”. As crenças que referem sobre os EUA, aparentemente indisputáveis, mas na verdade artificiais, encaixam-se nesta definição. Deixei de me surpreender com os vários mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem determinadas certezas, sem reflectirem seriamente sobre a natureza das “provas” e sobre os problemas que resultam de se pensar a partir dessas “provas”. Por isso, pergunto no White Order: como é que aqueles que acreditam que os EUA nunca foram imperialistas explicam que uma geração pioneira de pensadores conservadores, liberais e progressistas tenha dito o oposto? Porque estão eles errados?

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Após as invasões americanas do Afeganistão e do Iraque, deu-se uma renovação do interesse nas histórias do colonialismo, da administração colonial e da repressão colonial. Como é que as ciências sociais se relacionaram com estas dinâmicas? E com os seus trágicos falhanços, posteriormente?
É verdade que o início dessas guerras no Médio Oriente, que agora percebemos serem intermináveis, deram um novo fôlego ao estudo do colonialismo, e a ideia de que os EUA eram um império emergiu de uma forma que não víamos desde os finais dos anos 1960 e inícios de 70. Victor Bulmer-Thomas e Tony Hopkins lançaram este ano novos e detalhados estudos, Empire in Retreat e American Empire, respectivamente, que “nasceram” das invasões no Afeganistão e no Iraque. O coronel na reserva Andrew Bacevich, que também se reformou recentemente na Universidade de Boston, onde leccionava História e Relações Internacionais, escreveu sete livros sobre o militarismo e a política externa norte-americana desde 2003, e, talvez devido ao seu historial e conservadorismo profissional, granjeou maior visibilidade nos media do que a maior parte dos outros críticos.

Eu diria que o padrão mais significativo nas ciências sociais se prende com a militarização da academia desde 2001. A Antropologia, a Psicologia, a Ciência Política tiveram papéis auxiliares a desempenhar na contra-subversão, no regime de tortura e por aí fora. As antigas “escolas de estratégia” (Harvard’s Kennedy School e Belfer Center, a School for Advanced International and Strategic Studies da John Hopkins, a Woodrow Wilson School de Princeton e as suas cópias) prosperam, enquanto o Departamento de Defesa e o arquipélago de intelligence (CIA, DIA, NSA, etc.) são hoje fontes muito mais importantes de financiamento para os meus colegas do que as fundações privadas. Ao contrário do que sucedia na década de 1960, não há praticamente oposição a esta transformação altamente problemática.

No seu livro, e entre os vários escritos dos autores que estudou, deparamo-nos com um medo generalizado da “mistura racial”, da “decadência civilizacional” e com um alarmismo relacionado com as políticas populacionais. Infelizmente, podemos encontrar ansiedades semelhantes hoje em dia. O que é novo e o que é velho nos discursos presentes do medo?
Concordo completamente sobre os ecos que se fazem sentir do passado, e creio que não dei o devido valor ao peso que o medo assumiu (e continua a assumir) nesses projectos. Estou agora a tentar, de facto, acompanhar o que as ciências sociais têm a dizer sobre o medo. Ele é fundamental, como deixam claro, para os argumentos a favor da restrição da imigração e similares, mas também remete para crenças irracionais sobre escassez de recursos e sobre as ameaças como o Irão ou o Iraque colocavam ao “acesso” a estes. Posso estar errado, mas tenho dificuldades em ver diferenças sérias entre os argumentos produzidos por actores políticos e intelectuais da, sei lá, década de 1920, e os do presente.

Qual a importância de expandirmos as nossas investigações sobre processos que tornam o racismo invisível ou marginal, no sentido de lidarmos com os desafios políticos contemporâneos? Ainda é possível detectar uma Realpolitik racial hoje em dia?
Da mesma forma, entendo que uma Realpolitik “racial”, ou melhor, “racista”, com a sua imaginada fractura de absoluta e inerradicável diferença, está viva, e bem viva, hoje em dia. Retorno ao tema que estou a estudar presentemente. Na década de 1920, as “matérias-primas” que se dizia estarem em escassez e que, como tal, despertavam a ameaça de um futuro conflito, tal como hoje, estavam nas colónias, semicolónias e dependências de África, da Ásia e América Latina. Apologistas da ordem imperial começaram a insistir que as matérias-primas encontradas nos trópicos e semitrópicos eram, por direito, “a herança da humanidade”. Como o ex-governador da Nigéria Frederick Lugard enquadrou o problema no seu Dual Mandate in British Tropical Africa (1922), as raças que habitavam estes lugares não tinham qualquer “direito de negar as riquezas aos que delas precisavam”. Era uma questão de vida ou morte. Durante a Guerra Fria, os gurus de uma “geopolítica” reabilitada (ou, pelo menos, eles assim o esperavam), George Kennan a despontar entre eles, opunham-se à independência das colónias, sustentando que essa independência bloquearia inevitavelmente o acesso do Ocidente a essas matérias-primas de que tanto necessitava. Também eles se dirigiam para a ideia de “herança da humanidade” e desdenhavam da que postulava direitos soberanos. Estas crenças persistiram incólumes desde o trauma nacional erradamente recordado como o “boicote da OPEP”, quando as acções dos países produtores, como um precoce crítico desta duplicidade de princípios o colocou, foram regularmente condenadas como “crime”, “máfia”, “pirataria” e “chantagem de preços”, e que persistiram até às intervenções de 1991 e 2003 no Iraque e bem depois disso.

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