Jean-Paul Rappeneau: “Como é possível não amar os actores?”

O realizador francês trabalhou com Adjani, Binoche, Deneuve, Belmondo, Montand. E Depardieu, que dirigiu em Cyrano de Bergerac, agora de novo nas salas. Esteve em Lisboa, a convite da Festa do Cinema Francês, e falou ao PÚBLICO de uma carreira iluminada pelas grandes actrizes.

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Rui Gaudêncio
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Cyrano de Bergerac, a adaptação de 1990 da peça clássica de Edmond Rostand dr
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O actor Gérard Depardieu em Cyrano de Bergerac dr

Jean-Paul Rappeneau passou a sua carreira no cinema francês a pôr em destaque algumas das maiores vedetas do Hexágono: Catherine Deneuve, Isabelle Adjani, Juliette Binoche, Gérard Depardieu, Jean-Paul Belmondo, Yves Montand. O pormenor é que, entre 1965, ano da sua estreia na longa-metragem com Escândalo no Castelo, e este fim-de-semana de Outubro de 2018 em que visita Lisboa a convite da Festa do Cinema Francês da qual é o “padrinho” desta edição, Rappeneau, hoje com 86 anos de idade, assinou apenas oito longas-metragens. O que torna essa raridade invulgar é o êxito da maior parte delas; à cabeça, está Cyrano de Bergerac, a sua adaptação de 1990 da peça clássica de Edmond Rostand, nomeado para o Óscar de melhor filme estrangeiro e de melhor actor (Gérard Depardieu, premiado em Cannes), que fez a abertura da Festa e está de regresso ao circuito comercial em versão restaurada.

O autor de êxitos como Cyrano, Os Noivos da Revolução (1971, com Jean-Paul Belmondo e Marlène Jobert) ou O Meu Irresistível Selvagem (1975, com Catherine Deneuve e Yves Montand) não deveria precisar de esperar anos entre filmes. “Pois não!” ri-se Rappeneau num hotel lisboeta. “Sou uma jóia rara!”, continua. “Não tenho realmente resposta para isso. Nunca senti a necessidade de fazer filmes uns atrás dos outros, e quando termino um filme não tenho projectos na gaveta, não sei o que vou fazer a seguir. Há sempre um período em que ando à procura, leio livros, falam-me disto ou daquilo, e isso leva tempo. E também há casos em que levo tempo a desenvolver projectos que depois, por esta ou aquela razão, acabam por não avançar.” Cita um projecto ambientado no mundo da diplomacia, com o título Negócios Estrangeiros, que chegou inclusive a iniciar construção de cenários e repérages em exteriores antes do produtor acabar por “atirar a toalha” e cancelar o projecto. “São coisas que acontecem. Ter uma carreira é fazer uma estranha dança com o tempo...”

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O Meu Irresistível Selvagem (1975), com Catherine Deneuve e Yves Montand dr

A carreira de Rappeneau arrancou muito longe dos filmes clássicos de prestígio com que o identificamos (como Cyrano ou o posterior O Hussardo no Telhado, 1995, com Juliette Binoche). O realizador foi contemporâneo da Nouvelle Vague, trabalhando como assistente e argumentista de Louis Malle, em Zazie no Metro (1960) e Vida Privada (1962), ao mesmo tempo que escrevia para Alain Cavalier (O Duelo na Ilha, 1962) ou Philippe de Broca (O Homem do Rio, 1963, com Belmondo). A atenção ao argumento é uma das suas marcas registadas — “mas atenção, sou um realizador que escreve e não um argumentista que realiza,” diz Rappeneau ao PÚBLICO. “Como muita gente da minha idade, era um rapazinho que lia muito, rato de biblioteca, e não ligava muito ao cinema. Descobri-o muito mais tarde, mas mesmo quando percebi que era cinema que eu queria fazer, as coisas começam sempre com papel e lápis, mesmo para fazer um storyboard. Talvez seja algo que venha da minha infância, do meu desejo de também poder um dia contar histórias.”

Curiosamente, os seus filmes mais conhecidos não são argumentos originais –  Cyrano baseia-se na peça do século XIX de Edmond Rostand; O Hussardo no Telhado é um romance clássico de Jean Giono; Boa Viagem (2003)ambientado durante a invasão alemã da França durante a Segunda Guerra Mundial, foi criado com o romancista Patrick Modiano, vencedor do Nobel. “No princípio da minha carreira,” confessa entre risos Rappeneau, “achava que era preciso ser eu a escrever, o autor na sua torre de marfim, um deus no centro do filme! Com a idade tornei-me muito menos teórico. Mas é verdade que nunca teria pensado em filmar Cyrano se não tivesse recebido um convite dos produtores.”

A origem desse filme, aliás, é digna de ser contada — coisa que Rappeneau faz com verve e graça. “Quando me propuseram Cyrano, eu estava a escrever um filme para Isabelle Adjani, e o meu agente telefonou-me a dizer para parar tudo, 'querem que faças o Cyrano de Bergerac'. 'O quê, a peça?' 'Sim!' 'Mas para a televisão?' 'Não, não, um filme.' Torci o nariz. Tinha uma imagem de qualquer coisa antiga, poeirenta, não me apetecia muito pegar nisso. 'Mas também querem saber, se aceitasses, quem escolherias para o papel, com quem quererias fazer o filme. Precisamos de responder hoje.'” E o filme que é ainda hoje o título mais conhecido da carreira de Rappeneau resolveu-se, como ele diz, “num dia, depois do telefone tocar às dez de manhã”. Foi o realizador quem sugeriu o nome de Gérard Depardieu para o papel do fidalgo gascão, poeta, boémio e soldado de grande nariz. “Creio que os produtores estavam a pensar em Belmondo, mas nessa altura eu tinha vontade de trabalhar com Depardieu e a imagem apareceu-me como quem não quer a coisa. Alguém de muito forte e ao mesmo tempo muito frágil, com uma alma de criança. E havia muito de Depardieu em Cyrano.”

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Gérard Depardieu em Cyrano de Bergerac

Cyrano é também um caso à parte na carreira de Rappeneau, que diz começar sempre um filme pensando na personagem feminina. “É preciso que uma mulher ilumine um projecto, é sempre pela mulher que começo.” O que lhe criou algumas dificuldades quando trabalhou pela primeira vez com Yves Montand em O Meu Irresistível Selvagem, em 1975: “Ele era muito amigo da Deneuve, com quem contracenava, mas nunca tinha trabalhado comigo e estava convencido que eu estava a fazer o filme para ela e que ele estava só a fazer figura de corpo presente, e passou o tempo às turras comigo. Mudou de opinião depois de ver o filme, onde aliás ia muito bem. Telefonou-me depois da estreia a dizer 'Agora quero a vingança! Fazemos outro filme, serei um violoncelo entre os teus dedos, e vou deixar-te em paz.'”

Esse filme foi A Vida é uma Festa (1982), onde Montand contracenava com Isabelle Adjani, com quem Rappeneau voltaria a filmar em Boa Viagem, ao lado de Gérard Depardieu… Se os actores se repetem nos seus filmes não é por acaso; é porque “se sentem amados,” diz o realizador. “É uma história de amor, e aliás não sei como é possível não amar os actores. Vocês vão ter aqui em Lisboa uma retrospectiva do Henri-Georges Clouzot, que era uma figura odiosa, que filmou com a mais bela mulher do mundo que era a Brigitte Bardot e lhe deu um dia um estalo e gritou 'Cala-te!' Eu sou exactamente o contrário. Dizia-se que o Jean Renoir tirava o chapéu antes de arrancar uma cena por respeito aos actores, que são quem traz a vida ao filme. A mim já me aconteceu atravessar o décor depois de uma cena para ir abraçar e beijar os actores. Como se fossem uma dádiva do céu. E eles sentem isso.”

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A Vida é Uma Festa em que Yves Montand contracenava com Isabelle Adjani dr

A modéstia de Jean-Paul Rappeneau só pode vir de um cavalheiro francês à antiga, que confessa ter saudades dessa geração de estrelas. “É verdade, fazem falta actores como esses. Ainda os há — a Juliette Binoche no Hussardo no Telhado, por exemplo, onde me deixou siderado, emocionado, em lágrimas. Mas estou agora a preparar um filme que tem uma personagem feminina forte, jovem, olho à minha volta e não vejo quem poderia interpretá-la. Continuo atentamente à procura”, sorri cúmplice.

Cyrano de Bergerac, apresentado em versão restaurada na abertura da Festa do Cinema Francês, está em exibição no circuito comercial. A Festa do Cinema Francês dedica ainda um pequeno ciclo às obras de Jean-Paul Rappeneau, com a exibição no cinema São Jorge, sempre às 19h00, de Boa Viagem (este domingo, dia 7) e Que Famílias! (segunda-feira, dia 8)

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