Desvairar em horário nobre

Há um ano, Will & Grace regressava aos ecrãs – e a série original explica muito bem porquê.

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Não será a melhor sitcom de sempre, mas Will & Grace mostrou que era possível desvairar em horário nobre e perder muito pouco da sua graça DR

Há precisamente um ano, Will & Grace regressava aos ecrãs da NBC depois de 11 anos de ausência. O que poderia trazer de novo uma série que tinha quebrado muitos tabus da comédia televisiva em horário nobre e, no seu ponto mais alto, chegou a ter 17 milhões de espectadores por episódio em média?

A pergunta, no entanto, é outra: o que tinha Will & Grace de original na sua primeira encarnação e será que esse humor ainda sobrevive 20 anos depois? Não é do regresso em 2017 (exibido entre nós no TVSéries e, entretanto, já garantido para mais duas temporadas) que falamos aqui, mas sim das oito temporadas originais (1998-2006), exibidas no Fox Life e no SIC Mulher e agora disponíveis em VOD no serviço NosPlay. Se Will & Grace continua ainda hoje a ter impacto, isso deve-se àquilo que é a marca registada das melhores sitcoms americanas – a capacidade de criar empatia com personagens paredes-meias com a irredutível patetice. A amizade dos solteirões empedernidos Will (Eric McCormack), advogado picuinhas e gay, e Grace (Debra Messing), decoradora judia insegura e desmazelada, parece-nos quase normal face ao delírio desencadeado por Jack (Sean Hayes), o pendura fútil e desvairado que é o melhor amigo de Will, e Karen (Megan Mullally), a arrivista milionária permanentemente etilizada que é pseudo-secretária de Grace.

São personagens que, desta maneira, só poderiam existir numa série televisiva, estereótipos em alguns casos tão caricaturais que nem por um instante acreditamos que possam ser reais. E, contudo, a suspensão da descrença é perfeita, graças à entrega do elenco e à inspiração dos argumentistas. Houve quem lhe chamasse uma versão gay de Seinfeld, mas talvez fosse mais correcto dizer que Will & Grace começa como o vulgar de Lineu da sitcom tradicional (uma amiga e um amigo nova-iorquinos em busca dos namorados perfeitos) para o sabotar, subverter e transformar até apenas restar o esqueleto e tudo ter passado para uma dimensão de comédia surreal off-Broadway.

Nem é por acaso que, num arco iniciado na quinta temporada, o Monty Python John Cleese (nunca creditado no genérico) se tenha juntado ao elenco (como pretendente à mão de Karen, em algumas das melhores cenas da série); há algo da anarquia feliz dos Python a passar por aqui, como no episódio da sexta temporada em que Karen e Jack lamentam o final de Sexo e a Cidade e Frasier e se lançam num metacomentário sobre as sitcoms que reflecte a sofisticação com que a série respondia às exigências da fórmula, ao mesmo tempo que a desconstruía. E fê-lo com uma lista de convidados extraordinária: Blythe Danner, Cher, Chloë Sevigny, Edie Falco, Eileen Brennan, Jennifer Lopez, Madonna, Minnie Driver, Alec Baldwin, Elton John, Gene Wilder, Gregory Hines, Harry Connick Jr., Matt Damon, Michael Douglas, Sydney Pollack ou Woody Harrelson. Não será a melhor sitcom de sempre (dentro de uma mesma temporada os episódios podiam ser muito desequilibrados), mas Will & Grace mostrou que era possível desvairar em horário nobre e perder muito pouco da sua graça. É mais do que muitas séries contemporâneas podem dizer.

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