A euforia do samba antes do grande calafrio

Um Brasil festivo e feliz emergiu do concerto de Zeca Pagodinho em Lisboa, num coliseu cheio, a iludir os receios e os choques da batalha eleitoral de domingo. Virtudes do samba.

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Zeca Pagodinho no Coliseu dos Recreios, em Lisboa HERMES DE PAULA
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Por uma noite, o Coliseu de Lisboa transformou-se em sambódromo. Bilhetes sem lugar marcado, cadeiras arredadas da plateia para dar lugar à dança, gente a circular de cerveja na mão (para muitos, o seu “chope”), um clima de festa. Treze anos antes, também ali se vivera idêntica euforia, numa altura em que o Brasil já sofria um razoável abalo com o processo do “mensalão” (sem ainda afectar a popularidade de Lula, segundo sondagens da época). Agora, porém, a festa do coliseu antecede uma eleição presidencial de onde dificilmente alguém sairá bem, em primeiro lugar o próprio Brasil. Portanto, foi como se ali se condensasse a esperança brasileira numa redoma de felicidade, sem saber ainda o rumo dos votos de domingo e o previsível grande calafrio que no resultado se adivinha.

No coliseu, porém, nenhum mal. Só “gente do bem”, como diria Zeca Pagodinho. Já com uma atmosfera festiva criada pela informalidade da circulação na sala, pelas bebidas e pelo samba que saía dos altifalantes com o palco ainda vazio de músicos, o espectáculo propriamente dito começou com um grupo brasileiro formado e activo em Portugal, o projecto Viva o Samba, com 15 músicos em palco e a vontade de, por entre clássicos sambistas e um ou outro tema original, aquecerem condignamente a sala e os ânimos. E conseguiram-no, à sua maneira, galvanizando a plateia com sambas contagiantes como Acreditar, de Dona Ivone Lara: “Acreditar, eu não/ Recomeçar, jamais/ A vida foi em frente/ E você simplesmente não viu que ficou pra trás.” Até entrar Zeca Pagodinho.

O jeito de Zeca Pagodinho se apresentar em palco, dando primazia à “voz” do samba sem truques ou espalhafato (jeito esse que lhe garante o respeito da generalidade dos músicos e do público), num balanço gingado que lhe é muito peculiar, é já em si um espectáculo. Ele não esbraceja, não pula, não se perde em esgares, mas quando corpo e cabeça mexem são eles próprios ritmo, música suada, celebração sambista a sair por todos os poros.

O arranque fez-se com Samba pra moças, rodando os temas seguintes por amores em ebulição: Saudade louca, Uma prova de amor, Quando a gira girou e Cadê meu amor. Que depois glosaram as juras do marido bem comportado (Não sou mais disso) ou as ameaças do amante enciumado (Faixa amarela) ou desiludido (Vai vadiar). Tudo para se cantar em roda de uma mesa de bar, claro, mas ali exposto numa sala de maior lotação. Verdade (“descobri que te amo demais”) recuperou as paixões tórridas, num samba que é quase um hino. Isto antes de mergulhar no universo cerebral e iluminado de Zé Kéti (com as imortais Diz que fui por aí e Opinião) para depois sublinhar o universo das crenças, primeiro com Ser humano (“eu tenho esperança e fé no ser humano”), depois com Ogum (uma parceria de Zeca com Jorge Benjor celebrando São Jorge, cuja figura, a cavalo e ferindo de morte o dragão, acompanhou todo o espectáculo, no pano bordado e colorido que cobria todo o fundo do palco), e por fim com Minha fé, onde estende a sua devoção por São Jorge, ou Ogum no candomblé, a outros orixás como Xangô e Obaluaê. Depois, já a festa ia alta, desfilaram Ratatúia, Vacilão, Coração em desalinho e Deixa a vida me levar, a fechar a noite. Que não terminou sem um regresso de Zeca Pagodinho e dos onze músicos que o acompanharam (companhia perfeita, na harmonia e no ritmo), a reacender o samba em temas como Casal sem vergonha ou Judia de mim, este sim, em despedida.

O pano desceu, com a música ainda a tocar. Mas quando os altifalantes se mudaram para outros sambas, enquanto se entrevia o movimento da desmontagem dos instrumentos, ninguém saía da sala. Era como se, prolongando ali a festa de um Brasil feliz e unido nessa felicidade, fosse possível iludir o que, lá longe, ganhava foros de assombração. Nada de irremediável, já que o espírito brasileiro acompanha o espírito do samba. Como disse Zeca Pagodinho ao PÚBLICO antes do concerto, “o samba no Brasil está sempre bom, não pára nunca. Ele sai da mídia, mas não sai das ruas, das casas, não sai da gente.” E com o samba está o Brasil que ri e que chora – e levanta a cabeça depois dos temporais.

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