O Mirante: um jornal rijonal

Sobre a história de resistência de O Mirante e os desvarios da nossa Justiça.

Os processos movidos pelo advogado José Oliveira Domingos contra o semanário regional O Mirante, com sede em Santarém, são a razão de ser do recém-publicado livro O Processo – Tentativas de condicionamento da informação em Portugal, de Orlando Raimundo.

Os processos, para além de sinistros na sua essência por objectivamente visarem silenciar um órgão de informação e impedir a livre circulação de informação legítima e de interesse público, tiveram peripécias e acidentes processuais muito lamentáveis mas, graças a Deus, pouco usuais nos nossos tribunais.

Incomodado e até indignado com as notícias que o jornal publicara sobre uma acção judicial que movera contra a Câmara Municipal de Santarém reclamando o pagamento de avultados honorários e, posteriormente, com um editorial com o título “O habilidoso do Oliveira Domingos”, este advogado recorreu às mais variadas armas do arsenal processual. Primeiro, apresentou uma queixa-crime que – embora tenha vindo a ser arquivada – originou um momento triste da nossa vida judicial com uma invasão da redacção de O Mirante por dois inspectores da Polícia Judiciária com mandado de busca e apreensão à procura das armas do crime. Não levaram nada porque nada havia para levar e porque, felizmente, não pertenciam à Polícia Judiciária Militar, senão teriam aparecido armas e munições em profusão.

Arquivado o processo-crime, o advogado virou-se para uma providência cautelar que foi acolhida maternalmente pelo tribunal e em que o jornal e os jornalistas foram condenados a, entre outras coisas estapafúrdias, removerem de todas as páginas da Internet o referido texto bem como a fotografia de Oliveira Domingos que acompanhava o mesmo e a recolher e destruir todos os exemplares da edição em papel de O Mirante onde fora publicado o editorial, ainda não destruídos ou vendidos! Mais foram condenados a abster-se de editar, publicar, republicar, divulgar, distribuir ou difundir por qualquer meio e formato, texto, imagens ou registos áudio” que se referissem, direta ou indiretamente, ao advogado em causa, “em moldes que ofendam o seu crédito ou bom nome”. E, claro, porque a imprensa em geral, e a regional em particular, nada em dinheiro, a pagar milhares e milhares de euros por cada dia que algumas das condenações não fosse cumprida. Uma festa, sem a dignidade dos autos de fé inquisitoriais ou das queimas nazis de livros, mas mesmo assim digna de registo.

Não satisfeito, Oliveira Domingos apresentou ainda uma acção de indemnização contra o jornal e jornalistas, que veio a dar origem a uma sentença fascinante, pelo total desprezo que consagra pela liberdade de expressão e informação: os réus foram condenados a pagar uma indemnização ao advogado pelos danos morais por si sofridos como resultado da publicação do editorial e da fotografia, cujo valor exacto se viria a determinar em fase posterior mas que tinha como limite 105 euros por cada hora desde as 00h de 26 de Maio de 2011 até 17-04-2012. Como o período em causa corresponde a 7872 horas, teríamos a possibilidade de jornalistas e jornal terem de pagar ao ilustre causídico a modesta quantia de 826.560 euros. E esta era só uma das alíneas da condenação...

Recorreram advogado e jornalistas, o primeiro porque acharia que era pouco, os segundos porque achavam que era muito. Felizmente, o bom senso jurídico e existencial prevaleceram: os jornalistas e o jornal foram absolvidos no Tribunal da Relação de Évora, o que veio a ser confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

É esta história, (algo) alucinante sobre os desvarios da nossa Justiça, que nos conta o livro de Orlando Raimundo com um título e uma introdução a invocar o santo nome de Kafka, padroeiro de todos os que já se viram confrontados com os absurdos da máquina judicial. Mas, para além da história de resistência de O Mirante e de algumas reflexões pessoais e críticas sobre as realidades da nossa comunicação social, tem este livro (para os aficionados, é certo) um particular valor: um extenso parecer jurídico sobre o caso O Mirante de dois professores universitários – Jónatas Machado e Paulo Nogueira da Costa – que minuciosamente enquadra e arrasa as condenações proferidas pelos tribunais.

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