Então e essas instituições que iam parar Trump?

No início desta década sentei-me para escrever um livro chamado A Ironia do Projeto Europeu. Estávamos na ressaca da crise financeira e em plena crise da zona euro; mas havia qualquer coisa que estava a emergir por detrás de tudo isso e que me incomodava mais ainda. Tratava-se de aquilo a que chamei uma sociedade espartilhada entre crédulos e incrédulos: aqueles que acreditam em tudo e aqueles que não acreditam em nada. É o que encontramos, por exemplo, no mundo das teorias da conspiração.

Alguns acreditam na primeira coisa que recebem pela internet sem verificar; outros não acreditam nem na investigação mais documentada. E o pior é que ambas as personagens podem coexistir, e muitas vezes coexistem, na mesma pessoa. A quebra na confiança pública é de tal forma grande que há quem acredite na montagem que recebe de um anónimo na internet com a mesma força com que sustenta que nada do que venha da imprensa, da academia ou das instituições pode ser verdadeiro.

O problema deste estado de coisas é que ele estabelece o caldo de cultura perfeito para que o poder caia na mão de um charlatão.

E por isso a certa altura eu escrevia assim: “Uma sociedade espartilhada entre crédulos ou incrédulos é uma sociedade muito perigosa. A espécie precisa de crença e de descrença, mas partilhada: depende da confiança mútua para comunicar e da dúvida metódica para avançar. Nos momentos em que isto se quebra, o ser humano passa a ser presa e predadora de si mesmo.

Os políticos sem escrúpulos entendem que podem dizer tudo o que quiserem, porque os crédulos são crédulos e os incrédulos nunca acreditariam. Passa a ser possível, para um político que identificou as falhas na «ecologia de escrúpulos» da sociedade, dizer que quer a paz e procurar a guerra. Os políticos com escrúpulos sentem-se impotentes, porque olham a sua volta e só veem crédulos e incrédulos. Não são os políticos com escrúpulos que conseguem vencer os políticos sem escrúpulos. É preciso uma sociedade inteira, com cultura, com vontade cívica, para funcionar como antídoto para os políticos sem escrúpulos.

Um escrupuloso tem sempre menos armas no arsenal do que um inescrupuloso. Encontra-se limitado pelos seus escrúpulos, e se decidisse ignorar os seus escrúpulos, passaria a ser igual ao inescrupuloso. A história da Europa e do mundo demonstra-nos que há momentos em que é possível que um político sem escrúpulos venha de um nicho minúsculo até chegar a uma posição dominante, recebendo o poder directamente das mãos dos políticos que supostamente seriam os garantes da responsabilidade.”

Passados uns anos têm-me lembrado desse parágrafo, e eu tenho-me lembrado dele muitas vezes também. Nessa altura não havia Trump, mas era num Trump que eu estava a pensar.

A partir de ontem, Trump passou a ter a porta aberta para uma maioria no Supremo Tribunal americano. E agora basta que não perca as eleições no próximo mês de Novembro para que tudo lhe seja possível. No limite, Trump pode até conceder um perdão presidencial a si mesmo, por exemplo em crimes de evasão fiscal. Para quem não acredita que ele já tenha pensado nisso, atente-se no facto de que ele já disse que a Constituição americana não proíbe que o presidente se perdoe a si mesmo. Tal como já disse que poderia despedir a qualquer momento o responsável da investigação especial acerca dos seus laços com a Rússia sem que isso pudesse ser considerado obstrução a justiça. A partir de agora, terá um Supremo Tribunal tendente a concordar com ele.

Mas não precisamos de chegar tão longe. A grande batalha nos Estados Unidos, no passado como hoje, está nas leis eleitorais. Estas pertencem aos estados, mas quando há conflitos chegam frequentemente ao Supremo, e de qualquer forma o sistema eleitoral americano já está de tal forma enviesado que os democratas precisam de ter muito mais votos nas urnas para poder ganhar a Câmara dos Representantes ou, mais difícil ainda, o Senado. Se os democratas não ganharem pelo menos uma destas câmaras nas eleições de Novembro, Trump terá o caminho aberto para governar com poucas ou nenhumas restrições ao seu poder.

 Dá vontade de perguntar: onde estão as instituições que nos garantiam que iriam servir para conter o poder absoluto de Donald Trump? Nas mãos dele, ou em vias disso.

Tempos sombrios para a democracia americana.

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