Um Nobel da Paz para que as atrocidades contra as mulheres saiam da sombra da guerra

Nadia Murad e Denis Mukwege "fizeram uma contribuição crucial para combater este tipo de crimes de guerra", justificou o Comité Norueguês do Nobel.

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Nadia Murad foi raptada pelo Daesh e tornou-se num símbolo da violência dos extremistas. Denis Mukwege é um médico que ajudou milhares de mulheres vítimas de violação da RD Congo
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Denis Mukwege em trabalho no terreno numa imagem de arquivo agora divulgada pela Fundação Denis Mukwege EPA/TORLEIF SVENSSON
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Nadia Murad em Estrasburgo EPA/PATRICK SEEGER
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Denis Mukwege é um médico que ajudou milhares de mulheres vítimas de violação da RD Congo Reuters/Yves Herman

A atribuição do Prémio Nobel da Paz a dois dos mais destacados activistas contra a violação sexual em contexto de guerra vem trazer alguma luz para uma das dimensões menos conhecidas, mas igualmente atroz, dos conflitos em todo o mundo. O Comité Norueguês do Nobel decidiu atribuir o galardão a Nadia Murad, uma iraquiana yazidi que foi raptada e escravizada pelo Daesh, e a Denis Mukwege, um médico congolês que operou dezenas de milhares de mulheres violadas de forma bárbara.

“Cada um deles contribuiu à sua maneira para dar maior visibilidade à violência sexual em tempo de guerra para que os seus responsáveis respondam pelas suas acções”, justificou o comité quando apresentou o prémio. "Nadia é a testemunha que denuncia os abusos cometidos contra si e outras", afirmou a porta-voz do Comité Norueguês do Nobel, Berit Reiss-Andersen. Mukwege tornou-se no "símbolo mais unificador da luta para acabar com a violência sexual nas guerras".

A escolha mereceu elogios consensuais por parte de dirigentes políticos e activistas de direitos humanos em todo o mundo. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse que a atribuição deste Nobel da Paz integra um “movimento crescente que reconhece a violência e as injustiças” contra mulheres e crianças em todo o mundo. Os dois premiados, declarou Guterres, “ao defenderem as vítimas de violência sexual nos conflitos, estão a defender os nossos valores partilhados”.

A Alta-Comissária para os Direitos Humanos da ONU, Michele Bachelet, disse ser “difícil pensar noutros dois vencedores mais dignos do Prémio Nobel da Paz” que não Murad e Mukwege. O Presidente iraquiano, Barham Saleh, disse que a entrega do Nobel a Murad “é uma honra para todos os iraquianos que combateram o terrorismo e a intolerância”. Um deputado yazidi, Vian Dakhil, afirmou tratar-se da “vitória do bem e da paz sobre as forças da escuridão”.

“As violações nas guerras são um crime há séculos”, disse à Reuters o director do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), Dan Smith. “Mas era um crime na sombra e os dois laureados lançaram luz sobre isso”, acrescentou.

Crises por resolver

Apesar dos elogios, o trabalho dos dois activistas está longe de estar terminado e as suas missões continuam a enfrentar muitos desafios. Mukwege tem sido uma voz crítica do Presidente congolês Josepho Kabila, que acusa de querer eternizar-se no poder. Kabila devia ter abandonado o cargo no final de 2016, mas tem adiado a marcação de novas eleições. A reacção do Governo congolês à atribuição do Prémio Nobel ao médico não escondeu o mal-estar. "Estamos muitas vezes em desacordo com Denis Mukwege, de cada vez que tenta politizar a sua obra que, todavia, é importante do ponto de vista humanitário”, afirmou o porta-voz do Governo, Lambert Mende, citado pela AFP. Kabila não se pronunciou.

A própria situação na República Democrática do Congo permanece preocupante. Embora a guerra civil tenha terminado oficialmente em 2003, há grupos armados que continuam a aterrorizar aldeias e cidades.

O Nobel também traz à memória os inúmeros casos que envolvem missões de capacetes azuis da ONU em várias zonas do planeta, desde a República Centro-Africana ao Haiti. Em 2016, quando foi revelado que membros da missão de pacificação na República Centro-Africana pagavam a crianças por sexo, o então secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, disse tratar-se de “um cancro no sistema”.

Para Nadia Murad, o seu trabalho também está longe de terminar. Com a derrota do Daesh, a atenção do mundo em relação às escravas sexuais dos extremistas esmoreceu. Porém, milhares de mulheres e crianças yazidis continuam desaparecidas e muitas outras permanecem em campos de refugiados com pouco apoio médico e psicológico. A própria sobrevivência deste povo – uma das minorias religiosas mais antigas a habitar o actual território iraquiano – continua em risco.

Quando recebeu o Prémio Sakharov de 2016, em Estrasburgo, Nadia disse que a única solução para preservar o seu povo é a “criação de uma zona de protecção em coordenação com o Governo iraquiano e com o governo autónomo do Curdistão”.

Depois de um ano marcado pela sucessão de casos de abusos sexuais e num clima de uma abertura inédita para que sejam denunciados – conhecido como movimento “Me Too” – o comité Nobel fez questão de separar as águas, embora não negue pontos de contacto. “O ‘Me Too’ e os crimes de guerra não são bem a mesma coisa”, afirmou a presidente do comité, Berit Reiss-Andersen, durante a conferência de imprensa. “Mas ambos têm em comum verem o sofrimento das mulheres, os abusos contra as mulheres e que é importante que as mulheres deixem de lado o conceito de vergonha e falem”, acrescentou.

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