“A meditação não é a cura para a depressão, mas ajuda a entendê-la”

Chama-se Coen, que significa “círculo perfeito”. A monja brasileira publicou um livro e está em Portugal para fazer três palestras sobre como o budismo pode ajudar a ultrapassar a depressão.

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A freira budista acredita que o comportamento de cada um pode fazer diferença no mundo Andreia Patriarca

É brasileira e descendente de portugueses, recorda-se da mesa grande com os avós e as tias que não perderam o sotaque, gente curiosa que tinha um dicionário sempre por perto para conhecer o significado das palavras. Foi jornalista em São Paulo e viveu o governo militar com colegas e amigos vigiados, presos e torturados. Foi mãe muito jovem e viveu uma vida de excessos. Descobriu o budismo, fez a sua formação nos EUA e no Japão, regressou a São Paulo, onde está à frente de uma comunidade que não é só feita de budistas. Há quem passe por ela na rua e diga: “Monja, a senhora me salvou da depressão.” Ela não conhece essas pessoas, mas sabe que terão assistido a uma palestra ou a viram no YouTube onde o seu canal tem quase 800 mil subscritores (cinco mil são de Portugal, informa). Coen, foi o nome que foi atribuído a Claudia Dias Baptista de Souza. Significa “‘apenas um círculo’, que na verdade quer dizer ‘círculo perfeito’”, esclarece. A religiosa brasileira de 71 anos está em Óbidos, no Festival Literário Folio, esta sexta-feira para lançar o livro O Sofrimento É Opcional, publicado pela Nascente. No domingo falará para 600 pessoas, em Oeiras; e na segunda estará na Universidade de Coimbra, frente a 200 interessados em saber como o budismo zen pode ajudar a vencer a depressão.

PÚBLICO – Nasceu numa família católica, estudou num colégio de freiras, como é que chega ao budismo?
Monja Coen  – Aos 13 anos comecei a questionar: “Vocês dizem uma coisa, mas não fazem o que dizem. Por isso, eu não vou mais à missa, não sou mais católica.” Mas a pergunta ficava dentro de mim: “Quem é Deus? Em que é que a minha mãe, uma mulher inteligente, acredita?” Essa pergunta leva-me a estudar e a procurar noutros lugares.

Fora da Igreja Católica.
Pareceu-me que o berço era muito pequeno e que eu tinha crescido. A relação que tinha com Deus na infância não fazia sentido na adolescência. Lia muito e comecei a trabalhar no jornal A Tarde, na altura da Guerra do Vietname, e havia monges que se auto-imolavam em protesto. Era muito impressionante e eu perguntava-me: “Que espécie de controlo é esse? O que é a meditação?” Comecei a fazer práticas meditativas, passei por uma depressão, fui para Inglaterra, para os EUA, casei com um norte-americano, já estava muito envolvida com o budismo, com a capacidade de autocontrolo. Comecei a ler, a aprender a meditação.

Foi fácil convencer a sua família?
A minha mãe dizia: “Filha, se quer ser freira, seja católica! Porque vai escolher uma religião do outro lado do mundo?” Buda diz que só podemos ser monges se os pais concordarem e eu tive de convencer a minha mãe e ao fazê-lo, convenci-me a mim, porque a mãe está dentro de nós!

O que disse à sua mãe?
Eu ficava preocupada, porque pensava que estava a trair Jesus. Uma noite estava a fazer meditação e era como se visse Jesus e Buda, lado a lado, e eles não brigavam!

Porque a mensagem é parecida?
Pois. E isso deu-me uma paz muito grande. No dia seguinte, a minha mãe liga-me e diz-me: “Filha, eu entendi, você está servindo a quem eu chamo de Deus.” O processo de conversão não é imediato, é um processo lento que leva anos.

Depois de ler o livro pensei que o título deveria ser qualquer coisa como “Ensinamentos de Buda”, porque não há uma receita óbvia para sair da depressão, senão a ideia de que devemos seguir as lições de Buda.
Eu acho que os ensinamentos também estão nas outras tradições espirituais. O que aconteceu comigo é que a linguagem do cristianismo estava muito gasta. O budismo tem as suas diferenças e a principal é a prática meditativa – o zen é para todos, universal, enquanto no cristianismo a meditação é uma prática mais monástica. Para escrever o livro, pensei como poderia escrever sobre a depressão – eu tive essa experiência aos 19 anos – e lembrei-me da história de Buda.

Porque Buda sofreu de depressão?
Sim. É um menino rico, que sai para o mundo e fica surpreendido com o sofrimento que existe. Ele volta para o palácio e já nada tem significado, tudo perdeu a graça. Ele começa a procurar o sentido da vida e entra em depressão. Ele vai ficando quieto, não se ri, não brinca, não acha graça a nada. Uma noite foge e renuncia a tudo. Ele vai à procura, algo que poucos deprimidos conseguem fazer. A questão da depressão é que, se não tivermos alguém que nos ajude, não conseguimos sair sozinhos. Buda procura e chega à meditação. Ele medita e nesse processo confronta-se com as dualidades – que a Igreja Católica chama de “diabo” –, as provocações como o sexo, o poder, a ganância e ultrapassa tudo isso. No oitavo dia, olha para a grande estrela da manhã e diz: “Eu, a grande Terra e todos os seres juntos tornamo-nos o caminho.” Não é uma frase parecida com uma de Jesus?

Sim. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” Jesus esteve 40 dias no deserto.
Em meditação, provavelmente! Buda diz que não existe um “eu” separado. Sou um “eu” igual a toda a vida na Terra. Não há um “eu” que salva todos os outros, mas sou salvo por tudo o que existe. Se olharmos para as grandes tradições espirituais, todas dizem a mesma coisa, mas com outras analogias.

Seguindo o exemplo de Buda, como é que eu a curo a depressão com a meditação?
A meditação não é a cura para a depressão, mas ajuda a entendê-la. É o “conhece-te a ti mesmo”. Posso observar se tenho os sintomas, pergunto-me qual é o caminho da cura e procuro um médico, faço o tratamento e vou meditar. A meditação é um caminho de autoconhecimento para saber onde é que a pessoa está.

Mas no livro escreve: “Tenho a convicção de me ter curado de tendências suicidas e depressivas – bem como de constipações e dores físicas – apenas me sentando em silêncio durante o mínimo de cinco dias.”
É a consciência do corpo e da mente. Se pusermos uma pessoa sentada, virada para uma parede durante 16 horas por dia, não há como fugir: é ela com ela. Existem mudanças que acontecem. Em São Paulo, onde moro, há pessoas que me abordam: “Monja, gratidão, porque eu saí da depressão por sua causa.”

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E saem como?
Não sei como é que fazem, mas dizem que me ouviram, seguiram os meus ensinamentos. Não são budistas, mas a abrangência desses ensinamentos, numa época de desesperança, dão uma esperança de cura, de salvação e de libertação. Mas é cada um que se liberta através do autoconhecimento. Não é auto-ajuda, mas é conhecer-se em profundidade. Não é só a história de cada um – essa é a chave que faz cada um entrar no processo do que é a mente humana, como funciona e como podemos usá-la. O nosso cérebro são sinapses neurais e estas só acontecem quando há estímulo. E como é que estamos estimulando o nosso cérebro? Com sabedoria, com compreensão clara de quem somos, do que é o mundo, que este não é perfeito. Mas podemos almejar a melhorar e a fazer algo nesse sentido. Existe um estado de bem-aventurança, de nirvana, de paz, de tranquilidade que é a libertação do sofrimento.

É sobre isso que escreve neste livro?
É sobre isso: como é que nos libertamos do sofrimento? É aprender a como sair do estado de lamúria, de lamentação.

Mas como é que essa aprendizagem se faz, sobretudo quando diz, a páginas tantas, “levei anos inteiros”? Portanto, não é de um dia para o outro que saímos do sofrimento.
Não há milagres! Não é imediato, é um trabalho, como tudo na vida. Mas primeiro a pessoa tem de perceber que precisa de ajuda. E como estimular essa mudança? Acredito que a prática meditativa pode ajudar.

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A monja Coen foi casada, tem uma filha, uma neta e bisnetos Andreia Patriarca

Como é que num dia-a-dia de correria se introduz a meditação?
A chave de tudo é a respiração com consciência. “Agora vou inspirar, agora vou expirar e estou consciente do que estou a fazer.” Se alguma emoção vem, a nossa respiração muda. A pessoa começa a perceber, no seu corpo, as mudanças que acontecem conforme o seu estado emocional e como lidar com isso, ou seja, eu observo que houve uma alteração em mim, reconheço-a, procuro um estado de equilíbrio para encontrar a causa e procuro transformar essa causa – não com raiva, tristeza ou rancor –, procuro perceber como essas coisas mexem comigo e impedir que se repita. 

Ao referir a necessidade de evitarmos a raiva e o rancor, lembrei-me de uma outra frase que escreve: “Viver de forma correcta é estar absolutamente presente.” Somos correctos quando não lutamos pelas coisas?
Não gosto das palavras “lutar” ou “brigar”, mas de “construir e transformar a realidade”. É importante construir uma cultura de paz, de não-violência e isso vai depender de cada um de nós. Cada vez que a violência vem – respire e pense: “Qual é o melhor meio para responder?” Às vezes, o melhor meio é por parábolas, analogias, para que a outra pessoa entenda. É preciso treinar muito. Quem se conhece a si mesmo não é ofendido.

Mas muitas vezes ficamos presos ao “eu sou assim, não vou mudar”.
Não, ninguém é assim. Todos somos um processo de transformação. Não é porque a pessoa começou a meditar que já sabe quem é. Um dia li um livro de Trotsky que dizia que havia um governo corrupto, um grupo revolucionário matou-os a todos e declarou que a partir dali haveria um governo bom. Mas pouco tempo depois também estavam corrompidos. Por isso, Trotsky defendia que se a revolução não fosse internacional, não aconteceria. Eu li de maneira diferente: se cada um de nós não mudar, não é o sistema político, económico ou social que vai fazer a diferença, é cada um de nós, porque não são só “eles” que são corruptíveis, nós também somos. Por isso, se eu não for fiel aos meus princípios e valores, não vai haver mudança no mundo. Nós somos co-responsáveis pela mudança.

Sente que hoje em dia há mais gente interessada nas filosofias e terapias orientais?
Houve um desgaste e descrédito muito grande, porque a medicina não cura tudo, as religiões não salvam todos. Precisamos de uma nova linguagem, de uma nova maneira de nos exprimirmos. Mas não se pode mudar de repente, todas as mudanças devem ser demoradas. Tudo o que é imediato é fogo de palha. O Dalai Lama diz que não é preciso mudar de religião, mas aprofundar a sua e nisso a meditação também pode ajudar! Por exemplo, Inácio de Loyola [fundador dos jesuítas] também a fazia. Não somos assim tão diferentes! A capacidade humana de meditar está na nossa natureza, mas foi deixada de lado, porque começámos a correr para fazer coisas e agora estamos a sentir a sua falta. 

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