O museu, a nu, pelos seus celibatários

Quando um museu se dobra para dentro de si e expõe as suas entranhas, a coisa não é bonita de se ver. Isso acontece excepcionalmente — deu-se agora em Serralves — não porque os grandes museus construídos no último meio século (pelo menos, desde o nascimento do Centro Georges Pompidou, em 1978) não sejam uma máquina sumptuária de auto-exposição, mas porque os prodígios de arquitectura expostos à contemplação extasiada dos visitantes tem um efeito muito útil de ecrã: tudo pela contemplação, nada pela contestação. O efeito de ecrã estende-se a tudo o que se passa lá dentro, tanto nos gabinetes de gestão como nas salas de exposição: o museu, em si, tornou-se a sua própria finalidade e a sua vocação é muito mais expor-se do que expor. Mas às vezes há um acidente que esbate a opacidade do ecrã.

Foi o que aconteceu agora em Serralves; foi o que aconteceu, por exemplo, quando um colaborador mimportante do Guggenheim de Nova Iorque, Paul Werner, se demitiu e escreveu um pequeno livro-panfleto, Museum, Inc.: Inside The Global Art World (2006), em que descrevia os mecanismos perversos da Fundação, nos tempos eufóricos da especulação financeira que iria resultar na crise de 2008. Entretanto, construiu-se o Guggenheim de Bilbau e o  grandioso “navio” da Fundação Louis Vuitton, em Paris, ambos do arquitecto Frank Gehry, ambos modelos supremos da autonomia estética da forma-museu, ambos templos da fusão da arquitectura com a indústria do luxo e a arte contemporânea; entretanto, abriu uma franchising do Louvre” em Abu Dhabi, um edifício das arábias. E o Museu Judeu de Berlim, projectado por Daniel Libeskind, quando foi inaugurado, em 2001, tinha recebido 350 mil visitantes enquanto esteve vazio (e vazio devia permanecer, para sempre, defendeu então muita gente). São estes museus que produzem a arte e não o contrário; eles criam o contemporâneo. Estes novos museus dinamizam as cidades, são lugares de peregrinação nos percursos turísticos, capazes até de resgatar uma cidade da sua decadência, como aconteceu em Bilbau. Se o comunismo reconheceu o potencial ideológico da arte e soube como utilizá-lo para os seus fins, o capitalismo, abrigado por trás da aparente neutralidade da economia de mercado, explora o potencial económico que advém da atracção que exercem esses templos fetichizados, em competição uns com os outros, numa escala nacional ou internacional, pelo lugar num ranking que tem como primeiro critério o número de visitantes. Não importa se estes museus esmagam as obras de arte nas suas paredes e, tanto na sua concepção como na sua lógica de funcionamento, anulam toda a parte de sombra que elas, em princípio, têm; o que importa é que eles são empreendimentos de auto-glorificação ou para servir a glória de quem os concebe e os encomenda.

   A sumptuosidade destes museus em torno dos quais gravita o mundo da arte contemporânea cria ilusões acerca dos poderes e das riquezas dos artistas. O artista búlgaro Luchezar Boyadjiev, num projecto chamado “GastARTbeiter” (nome formado a partir da palavra alemã Gastarbeiter, que designa o trabalhador estrangeiro com uma permissão temporária de trabalho, ao qual é atribuída a condição de convidado e não de imigrante), contabilizou tudo o que as instituições da Europa ocidental gastaram com ele no espaço de alguns anos, em viagens, exposições, residências de artista, conferências, etc. Nas suas contas, o montante é de cerca de 100 mil dólares. Mas, em contraste, ele não dispõe de nenhuma reserva de dinheiro nem de bens, vive próximo da indigência no tempo em que não está sob a tutela das instituições que o convidam.

   Reduzir o recente conflito entre o director artístico de Serralves e a administração da Fundação a um caso — ainda em boa parte por esclarecer — de “censura” exercida sobre algumas fotografias de Mapplethorpe, é ficar por um episódio que tem atrás de si questões muito mais vastas e profundas. O que está em causa não é apenas uma discutível questão de moral ou de moralismo. Mais do que isso, devemos perceber que no modelo de museu a que aspira Serralves nem há lugar para a censura porque não há nada a censurar. É o museu idílico, como o parque.

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