Os juízes do Ministério Público e os juízes dos arguidos

Se há riscos, mesmo que ínfimos, da credibilidade e da imparcialidade judiciais serem postas em causa, seja pela convicção social de que há afinal juízes justiceiros e juízes coniventes com o crime, seja pela ideia de que as mulheres adúlteras ou alcoolizadas são vistas pelos nossos juízes como “agentes provocadores” dos crimes que sofrem, há que corrigir essas percepções.

A atenção natural e legítima que tem merecido a Operação Marquês, onde um ex-primeiro-ministro e diversas outras figuras públicas são acusadas, revela um aspecto quase caricato do nosso sistema de justiça. Parece que há afinal juízes de instrução do Ministério Público e juízes de instrução dos arguidos.

Alguns jornais — que são, já agora, pessoas a escrever sobre outras pessoas, e não entidades diáfanas desligadas e superiores à natureza humana — têm-se esforçado por apresentar um dos dois magistrados judiciais em funções no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) como o justiceiro devido que sempre nos faltou desde a padeira de Aljubarrota. E o outro juiz como um empecilho à realização da justiça dos homens, por evitar que as conclusões que o Ministério Público tira nas acusações não sejam referendadas de forma imediata, laudatória e empenhada.

Como conheço mal ambos os juízes, apenas de algumas palavras trocadas ao longo de anos no exercício de diferentes funções, nada sei sobre as suas convicções ou traços pessoais ou sequer se aquelas imagens exageradas são minimamente verdadeiras. Mas sei que não pode ser bom quando um juiz de instrução criminal, para mais nessa instância especial que é o TCIC, onde não sobem as pequenas agruras de carteiristas ou de ladrões de auto-rádios e das suas vítimas, se torna objecto autónomo de análise pelos seus alegados amores ou desamores pelas estruturas de investigação criminal. E deixaria para outra ocasião a reflexão, interessante, sobre a existência de jurisdições especiais para determinado tipo de crimes e sobre a manutenção destas jurisdições como tribunais singulares longos anos, sem a mudança regular dos seus intervenientes. Ou sobre o facto de os tribunais superiores serem apenas prolongamentos de uma burocracia decisória e não assumirem uma abertura ao exterior, como em tempos se pensou necessário, para que também fossem espaços de reflexão e representação social.

É legítimo, e diria até muito necessário, que as decisões judiciais possam ser conhecidas e debatidas pela opinião pública, desmistificadas nas suas olímpicas certezas e trazidas ao conhecimento daqueles que justificam a sua existência — todos nós. O problema é quando se cria a convicção, com intencionalidades diversas, de que há juízes de um lado da investigação criminal e juízes do outro e, portanto, em consequência, também do outro lado da justiça material. Seja no julgamento de alegados violadores, seja na instrução de ex-primeiros-ministros.

É possível que tenha havido crimes. É possível que absolvições ou penas suspensas sejam adequadas. Mas não há aqui um condicionamento externo das decisões judiciais, no sentido de se obter uma concordância plena entre o que a alguns parece e o que o tribunal decide?

E onde é que já vimos este filme, de defesa de um modelo de juízes subservientes para com uma administração processual prévia à sua intervenção, ao serviço de um interesse preciso? Ou de juízes defensores encarniçados de uma “moral de Estado”, mesmo que agora esta seja a do politicamente correcto? Ah, sim, foi nos tribunais plenários, pois foi.

Não deixa de ser visível como nos últimos anos a justiça penal concreta, ou seja, as decisões dos nossos tribunais, se tornou mais apetecível, não apenas para o sensacionalismo, uma realidade de sempre, mas também para o escrutínio cívico e democrático. Claro que antes houve o “Padre” Frederico. Houve o Processo Casa Pia. Mas agora há um ex-primeiro-ministro e financeiros de primeira linha entre os acusados. E há por exemplo uma consciência colectiva de direitos de género ou de neutralidade étnica sustentada e generalizada, que fura com as convicções convenientes dos brandos costumes e da submissão feminina. Parecem ser situações demasiado distintas? Não o creio.

Se até há pouco tempo os juízes da nossa democracia podiam decidir simplesmente como a tal foram ensinados, ou seja, no recato da sua consciência sempre recta por imperativo legal, imunes à turba, à imprensa, à conveniência da maioria e também do Estado — e os seus “erros” apenas eram apreciados por outros juízes —, será que ainda é assim? Ou, sendo provocador, será que estamos prestes a voltar a um tempo de “prevalência da moral e dos interesses sociais sobre os direitos individuais”, como Pedro Coutinho Magalhães caracterizava já em 1995 a “juridificação do autoritarismo” falando do Estado Novo (http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1233154719L6vQM6kv2Ky13CE6.pdf), agora mais por pressão social do que por imperativo estrutural do regime? E como se resolve isto?

Dir-se-á: são casos isolados e que, pela sua excepcionalidade, não representam “risco sistémico”. Mas o problema dos casos isolados e excepcionais é serem vistos, como bem reconheciam os antigos juristas medievais, como aquilo que se designava por “façanhas” e servirem como modelos decisórios em casos futuros...

Creio que há aqui algo para resolver, a seu tempo. E este não é um trabalho de políticos. Se o poder judicial é independente — e é —, tem de assumir os custos dessa independência e da sua visibilidade democrática.

Se há riscos, mesmo que ínfimos, da credibilidade e da imparcialidade judiciais serem postas em causa, seja pela convicção social de que há afinal juízes justiceiros e juízes coniventes com o crime, seja pela ideia de que as mulheres adúlteras ou alcoolizadas são vistas pelos nossos juízes como “agentes provocadores” dos crimes que sofrem, há que corrigir essas percepções.

Não porque a decisão judicial se deva submeter às ânsias dos influenciadores externos e às suas agendas, conscientes ou não. Mas porque a credibilidade das decisões judiciais em si é demasiado importante para as suas ameaças serem simplesmente despachadas em duas penadas para debaixo do tapete dos grandes princípios e proclamações. Talvez infelizmente, hoje já não basta apenas fechar a porta do gabinete e decidir.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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