Só os fascistas não têm culpa do fascismo?

Só ganharemos se defendermos convictamente as ideias de inclusão e solidariedade que sejam as mais claras e opostas possíveis ao tribalismo autoritário que divide e que exclui.

Conhecem a anedota do homem que vai ao médico e que lhe diz “doutor, não sei o que se passa: quando toco nos ombros dói-me, quando toco nos joelhos dói-me, quando toco na cabeça dói-me”? A resposta do médico é: “bem, o problema é que você tem o dedo partido”.

Lembrei-me dessa anedota no outro dia ao participar numa discussão sobre o momento político global numa universidade americana. Havia participantes de vários países: os italianos diziam que a culpa do fascismo em Itália era do centrismo de Renzi, os brasileiros diziam que era do esquerdismo de Lula, os gregos falavam da austeridade, os franceses falavam da imigração, os alemães de Merkel e dos refugiados. Os economistas diziam que a causa estava na crise. Mas se houvesse holandeses na sala talvez eles nos lembrassem que o primeiro grande sucesso nacional-populista foi o partido de Pim Fortuyn, meia-dúzia de anos antes do colapso do Lehman Brothers. E se houvesse suecos eu gostaria de lhes perguntar como é que, com o melhor estado social do mundo, os suecos têm um partido de extrema-direita com votações nos dois dígitos.

E aqui está o que me fez lembrar da anedota: afinal há tantos culpados para a ressurgência dos fascistas, mas só os fascistas é que não têm culpa do fascismo? Dói ao tocar na cabeça, no joelho e no ombro, e ninguém se lembra de se perguntar o que se passa com o dedo?

O problema deste identificar de culpas domésticas, por muito interessante e até plausível que seja, não está só em paradoxalmente desonerar os fascistas das culpas do fascismo. Pior: nesta lógica perversa são os anti-fascistas que têm a culpa do fascismo. Isso nota-se muito nas discussões nas redes sociais: a qualquer tipo de oposição ao fascismo aparece logo a resposta “estás a ver, por isso é que eles crescem!”. Nos EUA já levamos dois anos com os republicanos culpando a esquerda pela ascensão de Trump, embora Trump nunca tenha tido a aprovação da maioria dos americanos. No Brasil, mal acabaram as manifestações de mulheres contra Bolsonaro apareceram as primeiras críticas alegando que concentrar os esforços em deter Bolsonaro é que vai eleger Bolsonaro. A solução está, aparentemente, em ficar sentado e esperar que passe. Mas essa não funcionou no passado e não vai funcionar agora.

É evidente que há inúmeras explicações locais para o que se está a passar, às quais precisamos de acrescentar os erros táticos e estratégicos das várias famílias e lideranças políticas. Mas o facto de se estar a viver um fenómeno global exige também explicações e abordagens globais. E para chegarmos a essas precisamos de não perder de vista algumas ideias.

A primeira é que as pessoas devem ser responsabilizadas por aquilo que defendem na praça pública, e pelas ideias a que dão força através do voto. Nenhum tipo de auto-desculpabilização do fascismo ou, pior ainda, de desculpabilização do fascismo por outros, deve ser aceite. Os Bolsonaros, as Le Pen, os Salvini e os Trump sabem o que estão a fazer, e se bem que nem toda a gente que vote neles o faça compartilhando todas as suas ideias, a verdade é que o limiar de aceitabilidade destas se tornou mais baixo.

Isso leva-nos à segunda ideia. Estamos a viver uma mega-crise global composta de aspectos financeiros, ecológicos, sociais, migratórios e comunicacionais. No centro dessa crise está a ansiedade de que talvez não possa ser possível haver uma boa vida para todos. Nesse contexto em que o egoísmo é uma tentação, o aparecimento de políticos que justificam o egoísmo ou o tribalismo traz consigo grandes possibilidades de sucesso eleitoral, o que por vez arrasta consigo todo o tipo de oportunistas e carreiristas da pior espécie.

A terceira ideia é a de que há soluções para a crise global que não passam pelo tribalismo, mas que estas não dependem só de cada país isoladamente. Um bom exemplo é o das migrações. Paradoxalmente, nada é tão popular na Europa como a liberdade de circulação, até em países como a Hungria: só que se trata de liberdade de circulação para nós e não para os outros. Quando as fronteiras acabaram na UE não se exacerbou a migração interna (Portugal não ficou vazio depois de 1986, nem a Hungria e a Polónia depois de 2004) porque a abertura de fronteiras foi acompanhada de redistribuição e investimento na época da adesão (com a austeridade, a emigração voltou a aumentar). Da mesma forma, sem redistribuição e investimento entre países ricos e pobres nem as fronteiras mais perigosas do mundo deixarão de ser atravessadas. A extrema-direita sabe disso e aproveita-se, porque manter políticas que impedem a migração legal e aumentam a ilegal cria trabalhadores a ganharem pouco e sem direitos: uma situação hipócrita, que funciona discretamente a favor dos nacional-populistas e das suas elites.

Em último lugar, há que entender que este é um problema que vai ficar connosco bastante tempo: enquanto não se perceber que os estados não controlam hoje todas as variáveis da globalização vai haver gente a vociferar que a solução está no regresso ao passado do estado-nação e não na criação de formas democráticas que estejam mais adaptadas à globalização.

Nessa longa batalha de ideias que temos à nossa frente não poderemos sair vencedores se aquilo que tivermos a propor for apenas a versão mitigada do discurso egoísta que os fascistas lograram impor no espaço público. Pelo contrário, só ganharemos se defendermos convictamente as ideias de inclusão e solidariedade que sejam as mais claras e opostas possíveis ao tribalismo autoritário que divide e que exclui.

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