O sentido de Estado de Jorge Sampaio

Entre Marcelo e Cavaco, só mesmo Sampaio, no seu silêncio eloquente, sai como verdadeiro gentleman que sempre foi e é.

Para efeitos protocolares, os antigos Presidentes da República (PR) ocupam a 6.ª posição, de acordo com a Lei das Precedências do Protocolo do Estado (Lei n.º 40/2006, de 25/8), têm direito a uma subvenção vitalícia de 80% do vencimento do PR (cumulável com outras eventuais pensões que aufiram), gabinete de trabalho apoiado por um assessor e um secretário, viatura oficial com motorista e combustível, livre-trânsito, passaporte diplomático, uso e porte de arma e ajudas de custo “sempre que tenham de deslocar-se no desempenho de missões oficiais para fora da área da sua residência habitual” (Lei n.º 26/84, de 31/7).

Entendo que a dignidade do cargo de Chefe de Estado justifica estas regalias, embora também me pareça que se devia estabelecer um tecto máximo na cumulação da subvenção e pensões, sob pena de um ex-PR poder ganhar mais depois que durante o exercício de funções. Mas não entro na lógica miserabilista de que os políticos deviam receber menos, pois desejo para o meu país que seja servido pelos mais qualificados, numa altura em que a política não é atractiva.

Vem isto a propósito de fornecer dois dados objectivos sobre a “dignidade da função de Chefe de Estado” sobre que se tem falado no diálogo de surdos entre Cavaco e Marcelo. Já aqui no PÚBLICO tive a ocasião de me pronunciar sobre o excelente mandato de Joana Marques Vidal. Sendo certo que a Constituição não proíbe a renovação (basta relembrar Cunha Rodrigues), é também seguro que o princípio de um mandato longo e único tem profundo sentido democrático e está ao serviço de um Ministério Público (MP) autónomo, isento, imparcial e objectivo, em cumprimento do que o art. 219.º da nossa Lei Fundamental ordena. Triste foi a partidarização do debate, como também infeliz foi a circunstância de a ministra da Justiça ter aberto a questão muito antes do termo do mandato a 12 de Outubro. As negociações entre Governo e PR quanto à nomeação de um novo PGR devem decorrer com todo o secretismo e, nesse ponto, ambos os órgãos de soberania conseguiram “apanhar de surpresa quase todos”. Infelizmente, os floreados político-partidários lançaram um anátema de suspeição que não julgo justificado, pelo que as palavras de Passos Coelho soam ainda a um ressentimento por ter ganho as últimas legislativas e não ser primeiro-ministro.

Ninguém é insubstituível, sendo o cemitério um eloquente exemplo de seres que julgavam sê-lo. Já ouvi que uma solução deste género – a escolha de uma procuradora-geral adjunta que goza de prestígio no MP –, quando se especulava sobre a continuação de Marques Vidal, tem mais o timbre do maquiavelismo de Marcelo. Pouco importa este fait-divers: diria que Costa e Marcelo são igualmente hábeis e que acabaram por encontrar uma boa solução. Rio voltou a lançar um torpedeiro para a água – defendia que o PGR devia ser um professor de Direito, depois de ter propugnado pela continuação de Vidal – na batalha naval em que se converteu o seu mandato, pois basta conhecer um pouco o MP para perceber que este funciona melhor com alguém da estrutura. Algum corporativismo? Por certo; mas este é do inócuo, do mesmo modo que a PJ melhorou o seu desempenho a partir de Almeida Rodrigues e do actual director-nacional, homens da casa. Quem não gosta de saber que, sendo parte de uma estrutura, pode aspirar ao seu mais alto cargo?

Cavaco acordou do seu torpor e lançou uma boutade que se não coaduna minimamente com o estatuto de antigo PR. Este deve ser um vulto da democracia e da cidadania, afastando-se de comentar os assuntos correntes da governação e, muito em particular, como aqui, os que são da competência última do PR em exercício. Não só a elegância como o respeito pelo cargo deveriam ter mantido aquele que ficou conhecido por “múmia” no seu gabinete, entretido com as suas memórias. Cada vez admiro mais Jorge Sampaio, por saber interpretar exactamente o que dele se espera: empenhado em causas nobres, como o acolhimento de estudantes sírios, a alta representação da ONU para a luta contra a tuberculose. Não se lhe ouve uma palavra que ultrapasse isto mesmo: uma cidadania activa; a palavra a ser dita é-o no Conselho de Estado, órgão de consulta do PR onde, por inerência, têm assento os antigos PR. Aí se deve reservar a visão política, bem como, quando chamados, o conselho ao Presidente em funções. Uma espécie de embaixadores honoríficos de Portugal e daquilo que o Estado tem de melhor. Nunca uma “força de bloqueio”, ainda para mais com insinuações que não provou nem vai provar. Não fiquei admirado. Cavaco ainda está recalcitrado e os sais de fruta devem estar à míngua na Travessa do Possolo.

Marcelo teria aqui oportunidade de ouro para demonstrar o dito “sentido de Estado”, não comentando os comentários das suas decisões por parte de um ex-PR. Sabe-se, todavia, que Marcelo não despe a pele de comentador e que não é pessoa de guardar para si o que tem ganas de dizer. Mal. “O silêncio é de ouro e a palavra de prata”, como se diz por cá. Se não tivesse insinuado de forma mais que sub-reptícia o que insinuou sobre Cavaco, através da magistratura do silêncio, Marcelo teria ficado em situação de superioridade moral e ética. Mais ainda, teria demonstrado que convive democraticamente com a crítica, venha ela de onde vier. E teria evitado o caricato da inauguração das novas instalações da business school da Nova em que cumprimentou Cavaco, mas este não esteve para o ouvir, por ter “um compromisso familiar ao qual não podia faltar”. Claro que podia – e devia – se não queria dar a ideia que deu de menino birrento. E Marcelo bem o referiu no seu discurso, como um dos mais ilustres docentes daquela nova casa que, sendo um facto objectivo, neste caldo rasteirinho pareceu mais um remoque.

Ambos saem mal na selfie e Cavaco lembra o tempo em que não ouviu Soares na abertura do lamentável congresso “Portugal: que futuro?”, por estar no Pulo do Lobo a comer caracóis, sem cobertura de rede. Entre Marcelo e Cavaco, só mesmo Sampaio, no seu silêncio eloquente, sai como verdadeiro gentleman que sempre foi e é.

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