Cantoras carecas

Tancos é apenas o sintoma mais extremo de outras «cantoras carecas», como são o impensável amadorismo/oportunismo da tentativa de transferir o Infarmed para o Porto ou a guerra dos táxis versus Uber

A Cantora Careca, de Eugène Ionesco, é uma das peças mais célebres do teatro do absurdo, onde nada faz sentido: desde o título às situações e diálogos entre duas famílias burguesas britânicas (mas que poderiam ser de outro país qualquer). Além disso, a universalidade da sátira de Ionesco assenta que nem uma luva aos reflexos corporativos das instituições portuguesas, tal como vimos ao longo da última semana: Forças Armadas, Justiça, Política, Cultura, não houve quase nenhum sector que tivesse escapado.

A confirmar o gosto da teatralidade, o director da PJ Militar terá confessado ao juiz de instrução do caso de Tancos que o aparecimento das armas roubadas fora encenado «em nome do interesse nacional». Lê-se e não se acredita, mas pensando um pouco mais estamos perante uma explicação patética e grotesca daquilo que não poderia ter acontecido e aconteceu: um rocambolesco roubo de armas e a sua ainda mais rocambolesca recuperação, conseguida após o conluio entre o principal criminoso (tanto quanto sabemos até agora) e as instituições militares supostamente vocacionadas para investigar o crime.

«Em nome do interesse nacional» é a chave da explicação corporativa em que se refugiam as instituições militares para esconderem o mistério de Tancos da indiscrição das instituições civis, nomeadamente da PJ e do Ministério Público. Como chegámos então a esta «cantora careca» (que «não lembra ao careca», como diria o comentador Marcelo) do teatro do absurdo e de um filme burlesco dos irmãos Marx? A explicação mais lógica – se é que podemos falar de lógica num caso onde impera a total falta dela – reside no mundo cada vez mais opaco de um poder militar doentiamente fechado dentro das suas casernas (afinal tão vulneráveis) face ao poder civil, e nas absurdas guerras corporativas que escapam ao controlo das instituições políticas democráticas e expõem à insignificância e ridículo absolutos o ministro da Defesa.

Mas Tancos é apenas o sintoma mais extremo de outras «cantoras carecas», como são o impensável amadorismo/oportunismo da tentativa de transferir o Infarmed para o Porto, a guerra dos táxis versus Uber – passando o conflito do âmbito nacional para o municipal, já depois de aprovada a lei – ou, no campo judicial, a lotaria da escolha do juiz de instrução da Operação Marquês entre dois magistrados de perfis diametralmente opostos para decidir a sorte de um dos processos mais volumosos, complexos e polémicos da Justiça portuguesa.

Finalmente, temos Serralves. E, aqui, a «cantora careca» é encarnada por dois mundos em conflito, onde todos ralham e ninguém parece ter razão, até porque nenhuma das partes falou claro e oportunamente. Nem a administração da Fundação que supostamente terá interferido na actividade do director artístico e curador da exposição de um artista muito polémico, Robert Mapplethorpe, com as suas fotografias «eventualmente chocantes», mas que veio tardiamente a refutar essa interferência. Nem o tal curador e director entretanto demissionário, mas que se afastou do palco do conflito, cultivando um silêncio incompreensível e alimentando versões contraditórias sobre a sua intervenção. Tudo isto proporcionou uma guerrilha entre defensores do curador – vindos basicamente do meio artístico – e da administração – oriundos sobretudo do mundo político e empresarial nortenho, enquanto se acentuavam os temores portuenses, designadamente da Câmara local, sobre os custos da polémica na reputação internacional de Serralves.

Uma das chaves para o mistério é o choque entre dois mundos opacos que não sabem dialogar entre si, protagonizados pelo director demissionário e a presidente da Administração. Mas fica por perceber a já longa história das demissões (e não-substituições) em Serralves, já anteriores ao caso Mapplethorpe, por alegado autoritarismo da presidente. Seremos, de facto, um país acolhedor para as «cantoras carecas»?

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