A senhora que fala(va) sozinha

Quando estou a trabalhar, mergulho de tal maneira nos meus pensamentos sobre a maldade que os seres humanos são capazes de fazer uns aos outros que nem me apercebo de que estou a fazer um comício.

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De todas as vezes que contemplo a senhora responsável pela limpeza diária da redacção do Porto durante os seus afazeres, vem-me sempre à memória a força com que os Stomp nos beliscam, acordando-nos para a importância das pequenas coisas que tantas vezes descartamos das nossas vidas: o singelo acto de pararmos para pensar ou de perdermos alguns, muito poucos, instantes a ouvirmos ou simplesmente a observarmos os gestos dos outros. Às vezes, inconscientemente, dou comigo a ensaiar um sapateado no limpo chão de linóleo, ao ritmo a que a dona Maria Manuela se vai movimentando.

Adoro os Stomp, e, claro, a dona Maria, que muito bem nos trata das instalações. Tenho uma caneca desta orquestra originária de Brighton, no Reino Unido, comprada num dos últimos concertos, no Coliseu do Porto, há uns anos. Por ela bebo a água de todos os dias, como se de uma poção se tratasse. Carinhosamente, conservo também em mim um enorme abraço que um dia me foi dado pela senhora da limpeza.

Maria Manuela, grisalha, elegante e muito delicada, recolhe-se em si, como uma tartaruga na sua timidez. No interior da sua azulada bata, caminha, a passos estudados e arrastadamente lentos, com o corpo quase colado à parede oposta à das mesas da redacção, ordenando ao seu sobrelotado carrinho de instrumentos que nunca incomode as senhoras e os senhores jornalistas. Não usa as ferramentas de trabalho à semelhança dos Stomp; no entanto, leva a crer que é com os seus adereços que comunica. Sem alarido, percorre o longo corredor da redacção, numa espécie de performance artística.

De vez em quando, como se nada fosse com ela, anuncia-se pelas reflexões que vai tendo consigo mesma. O seu trabalho torna-se transparente, à medida que, em alta voz, vai soltando um monólogo, algumas vezes musicado, enquanto executa as suas tarefas.

Tenho também as minhas rotinas, às quais sonambulamente me entrego e que vão tomando conta de mim, sem sequer me dar por isso – tais como tomar um simples café –, depois de ligar – algo banalíssimo, claro – o meu arcaico computador e todas as aplicações necessárias para fazer chegar aos leitores as melhores fotografias que me for possível.

Aguardo que o meu PC e eu nos estabilizemos, durante uma meia hora, e nos dêmos o sinal de prontidão para mais um dia de sã convivência, dirigindo-me, como sempre, à copa para tirar um café e passar por água a minha caneca timbrada com a imagem dos Stomp.

Foi na busca de uma dose de cafeína que me recordo de despertar com uma voz hesitante e meio trémula a sussurrar-me algo que um coração nunca me diria: “Detesto as pessoas que não respeitam e desestabilizam o trabalho dos outros.” Era a voz de Maria Manuela, que prefere que a trate por Maria e que dá graças aos pais pelo tão imaculado nome.

Antes desse dia em que nos cruzámos na copa, havia trocado com Maria apenas algumas normais saudações de gente comum. Debatia-se com alguma louça amontoada na banca. Houve sucessivos e envergonhados pedidos de desculpas mútuos, e simultaneamente (como que num recuo de vídeo) retirei-me, conforme tinha entrado, agora de costas, em direcção à porta da sala de refeições.

Não reflecti de imediato no alcance das palavras da senhora, pois o meu cérebro encontrava-se literalmente focado na rotina do café para ultrapassar a lenta compreensão. Mas o som do esfregão e da água a cair sobre a grelha da base da máquina de café despertou-me para o sentido daquela observação.

Após uns dias a pensar nas palavras de Maria, com as quais naturalmente me identifico, ganhei finalmente coragem de a interpelar para uma conversa. No fundo, o que pretendia, para além de a conhecer melhor, era compreender a sua perspectiva sobre o que significava de facto essa “desestabilização” do seu trabalho pelos “outros”. É algo que também me atormenta como fotógrafo e editor de fotografia, numa organização em que existe uma estrutura muito bem oleada e que funciona geralmente bem na sua transversalidade, à semelhança dos Stomp. Recuso-me a compreender qualquer conflito de instrumentos musicais que quebrem toda a harmonia de uma orquestra.

Nessa conversa que decorreu entre abraços, consegui um clima propício e coragem para uma primeira pergunta que também me perseguia:

“Desculpe-me, dona Maria. Por favor, não me leve a mal, sou muito curioso como as crianças e tenho mesmo que lhe fazer esta pergunta: porque é que a senhora fala sozinha e em voz alta?”

O inesperado aconteceu: uma enorme e sonora gargalhada infantil apossou-se de Manuela, que por breves instantes destapou o rosto de menina. “Olhe, é a primeira pessoa que me pergunta isso!”. Outro sorriso, com os seus olhos azul-turmalina a brilhar. “Tenho um neto autista, o meu lindo Mário, com quem aprendo todos os dias e ele comigo... Só aos oito anos é que começou a associar as palavras e a entender. Agora, tem 12 anos e digo-lhe muitas vezes: ‘Olha a avó, Mário, não se fala alto!’. Nós falámos muito todos os dias. Tenho que lhe fazer entender a realidade da vida, ensinar a saber estar na vida, a respeitar o próximo. Por outro lado, o meu sistema nervoso é normal, apesar de não conseguir estar muito tempo parada. Sabe, sou surda do ouvido direito e o outro não anda também lá muito bem. Quando estou a trabalhar, mergulho de tal maneira nos meus pensamentos sobre a vida, sobre o mundo, sobre a maldade que os seres humanos são capazes de fazer uns aos outros, que nem me apercebo que estou a fazer um comício. Às vezes, prefiro conversar com as minhas plantas para não me chatear com as pessoas, ou mesmo dar um passeio à beira-mar para aliviar a tensão que me incomoda, pelas coisas más que vão acontecendo pelo mundo.

“Acho que as pessoas actualmente cometem muitos erros por não pararem para pensar na relação com os outros, porque uma palavra mal dita ao outro, às vezes, é pior do que dar-lhe um bofetão. Deviam ir até à beira-mar, porque comunicar com o mar é uma coisa fantástica: alivia e é algo que faz bem à alma, aos pensamentos e aos sentimentos. O mar acalma a gente e é bom para reflectir... O mar alivia um bocadinho o stress do dia-a-dia, eu entendo isto assim, na minha maneira de pensar.”

Após dez minutos a ouvir Maria – a senhora que falava sozinha –

pareceu-me ridículo colocar-lhe a questão sobre “as pessoas que não respeitam e que desestabilizam o trabalho dos outros”.

Senti uma estranha sensação de ter abraçado o mar, quando me despedi da senhora das limpezas e regressei à minha secretária, onde o meu computador me aguardava, também estável, para editarmos as fotografias do jornal.

Para meu regozijo, Maria pediu-me ainda, por favor, que tivesse muito respeito e muita paciência com todas as estagiárias e todos os estagiários. Nunca me devo esquecer que sou um deles, porque estamos sempre a aprender.

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