O princípio do fim de Theresa May, ou o primeiro dia de um acordo para o "Brexit"?

A primeira-ministra britânica chega ao congresso anual dos conservadores agarrada a um plano para a saída da União Europeia que não agrada a Bruxelas, à oposição trabalhista e a uma facção importante do seu próprio partido. Fragilizada e cada vez mais isolada, a forma como May vai desatar o nó é a grande incógnita.

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LUSA/ANGELA WEISS / POOL

O congresso anual do Partido Conservador, que começa este domingo na cidade de Birmingham, não é um congresso como outro qualquer. É o momento que pode definir o futuro da primeira-ministra britânica, Theresa May, do “Brexit” e do Reino Unido. May mantém-se entrincheirada no seu plano para a saída da União Europeia enquanto é atingida por tiros de todos os lados: de Bruxelas, da oposição trabalhista e do interior do seu próprio partido, que vive um clima de guerra civil.

Em Julho, May reuniu o seu Governo para desenhar a proposta para o relacionamento futuro do seu país com a União Europeia após o “Brexit” a ser apresentada em Bruxelas. Conhecido como “plano Chequers”, a primeira-ministra propôs a criação de uma zona de comércio livre com a UE, que engloba a transacção de bens industriais e produtos agrícolas. As ondas de choque fizeram-se sentir quase de imediato, e levaram à demissão de Boris Johnson do cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros, que entretanto se pôs na frente de batalha contra Theresa May e já começou a afiar as facas na antecâmara do congresso tory. Antes de Johnson, foi David Davis, que tutelava a pasta do “Brexit”, a anunciar a sua retirada por divergências com o “plano Chequers”.

Daí para cá, May agarrou-se com unhas e dentes à sua proposta mas não parou de receber rotundos “nãos”. No encontro informal de chefes de Estado e de Governo da União Europeia em Salzburgo, os alarmes soaram com especial intensidade. Os líderes europeus chumbaram a proposta de Londres. Com a data do “Brexit” cada vez mais próxima (no dia 29 de Março de 2019), a probabilidade de o Reino Unido sair da UE sem qualquer acordo aumentou.

Na semana passada, em Liverpool, o Labour reuniu-se no seu congresso e decidiu bater o pé: se as propostas de May vingarem, os trabalhistas vão votar contra. E se o seu plano for rejeitado no Parlamento, vão pedir eleições antecipadas. Na mesma reunião magna falou-se até num segundo referendo, algo que o líder dos trabalhistas, Jeremy Corbyn, já disse não querer. Mas se as suas bases assim o decidirem, não terá outra opção senão respeitar – no congresso de Liverpool, os trabalhistas aprovaram uma moção que inclui a possibilidade de realização de um segundo referendo sobre os termos do “Brexit”. Ou seja, todas as opções estão em cima da mesa.

“Theresa May precisa de um acordo [de saída da UE]”, diz em resposta ao PÚBLICO, Asa Bennet, editor para o “Brexit” do jornal britânico Telegraph. “Porém, o que ela quer é demais para os líderes europeus, e o que eles querem dela é demasiado para ela ceder. Assim, as negociações estão encalhadas, e o relógio não pára”.
“O plano dela é actualmente inexistente”, acrescenta ao PÚBLICO Nicholas Wright, professor de Ciência Política na Universidade de Londres. “O pressuposto é o de que, uma vez passado o congresso, poderemos começar a assistir a alguma movimentação séria em termos do comprometimento do Reino Unido – mas depois do desastre que foi Salzburgo, não estaria tão certo em relação a isso”.

Boris tem um plano alternativo

A liderar a armada conservadora contra May está Boris Johnson, acérrimo defensor do “Brexit”. E para não deixar dúvidas, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros escreveu um texto no Telegraph, a dois dias do início do congresso de Birmingham, onde exige à primeira-ministra que rasgue o seu “plano Chequers” e apresenta as suas próprias propostas para um acordo com Bruxelas.

No artigo intitulado “O meu plano para um ‘Brexit’ melhor”, Johnson diz que “este é o momento para inverter o curso das negociações e para fazer justiça às ambições e potencial do ‘Brexit’”, descrevendo as propostas de May como uma “humilhação moral e intelectual” para o Reino Unido. A alternativa que Boris propõe é um “acordo de comércio livre do tipo Canadá”. Conhecido pela sigla CETA (Comprehensive Economic and Trade Agreement), o acordo com o Canadá é descrito como “o mais ambicioso acordo de comércio que a UE alguma vez concluiu”. E prevê que cerca de 98% dos bens comercializados entre canadianos e europeus sejam isentos de impostos.

A verdade é que este salto em frente de Johnson foi seguido por várias figuras conservadoras, entre as quais Jacob Rees-Mogg, outro eurocéptico radical.

“A primeira-ministra teve a tendência para fazer concessões até agora, mas o problema é que, enquanto entramos na fase final as negociações sobre o ‘Brexit’, os seus colegas eurocépticos preocupam-se com o facto de ela poder estar a oferecer muito, prejudicando ainda mais o potencial do ‘Brexit’ para o Reino Unido”, explica Bennett.
“A única coisa que actualmente une o Partido Conservador é a perspectiva de um Governo trabalhista liderado por Jeremy Corbyn. Os tories estão profundamente – talvez irremediavelmente – fracturados”, diz, por sua vez, Nicholas Wright.

“Neste momento, a melhor coisa que Theresa May tem é que não há alternativa realista – quem vai conseguir fazer melhor? Na essência, isto não é sobre May, embora ela não seja certamente a líder mais carismática ou impressionante. Isto é sobre a realidade do Reino Unido deixar uma estrutura legal complexa (a UE) e enfrentar a realidade da assimetria de poder. Os dois lados não são iguais nestas negociações e nunca foram. Alguns tories percebem isto. Outros, ou não percebem, ou não o querem admitir”, continua Wright.

Para tirar um pouco mais o sono a May, na sexta-feira, o site conservador Conservative Home, publicou uma sondagem onde se conclui que oito em cada dez membros tories defendem que a primeira-ministra deve cair já ou antes das próximas eleições, em 2022.

Nervosismo em Bruxelas

No meio de tudo isto, Jeremy Corbyn foi a Bruxelas encontrar-se com Michel Barnier, o principal negociador do “Brexit” da UE, e conseguiu alarmar ainda mais os responsáveis europeus. Lá, deixou a garantia de que vai rejeitar qualquer acordo que não conceda ao Reino Unido os mesmos benefícios da união aduaneira dos outros Estados-membros.

Antes da visita de Corbyn, já a imprensa britânica tinha avançado que, em Bruxelas, começaram a circular documentos de trabalho pedindo aos embaixadores junto da UE que comecem os preparativos para um cenário de não-acordo com o Reino Unido – algo que, para o líder trabalhista, seria “um desastre nacional”.

A incerteza impera relativamente a uma das decisões políticas mais relevantes das últimas décadas no Reino Unido, e cresce a sensação de que o actual Governo britânico é incapaz de negociar um acordo com Bruxelas que satisfaça as necessidades do país.

E o impasse começa a preocupar e a paralisar os agentes económicos. Na sexta-feira, a Câmara Britânica de Comércio (BCC, na sigla em inglês), órgão representativo de 52 câmaras de comércio que englobam 75 mil empresas, avisou que dois terços das empresas britânicas não estão preparadas para o impacto do “Brexit”. “A seis meses da saída do Reino Unido, as empresas ainda não têm respostas do Governo para as suas questões mais básicas sobre as futuras condições comerciais”, disse, citado pela Bloomberg, Adam Marshall, director-geral da BCC.

Este aviso precedeu um relatório da empresa de estudos de mercado alemã GfK, que concluiu que a confiança dos consumidores britânicos caiu em Setembro perante a encruzilhada em que se tornou o processo do “Brexit”.
Segundo uma sondagem da Reuters, a maioria dos britânicos não está também muito confiante em relação ao desfecho das negociações: 60% dos inquiridos duvida que Londres e Bruxelas consigam fechar um acordo até Novembro, altura proposta por Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, para a realização de uma cimeira extraordinária para a assinatura de um acordo definitivo.

Theresa May chega assim ao congresso fragilizada e com o seu plano para o “Brexit” em risco – caso seja rejeitado pelos membros do seu partido, ou, depois, no Parlamento –, mas também com a sua própria sobrevivência política em causa. “A liderança de May depende da sua gestão do ‘Brexit’”, vaticina Bennett. “Ela conseguiu sobreviver até agora”, continua, acrescentando que “ela procurou argumentar contra os seus críticos eurocépticos que, se eles perturbarem as coisas, correm o risco de derrubar um Governo conservador e, potencialmente, o processo do ‘Brexit’ pelo qual lutaram durante tanto tempo”.

Nicholas Wright é da opinião de que a primeira-ministra “está a trabalhar no pressuposto de que o congresso será bastante terrível e crítico, mas sabendo que não pode haver desafio à sua liderança a menos que os deputados o queiram”. “Por isso, ela vai enfrentar a raiva das bases e prosseguir”, conclui.

Para o especialista no “Brexit” do Telegraph, May terá de convencer os seus críticos de que “ela vai ser uma líder dura – uma ‘bloody difficult woman’ como disse o antigo ministro conservador Ken Clarke – em nome do interesse nacional do Reino Unido”. Como o irá fazer é uma dúvida que poderá ser esclarecida quando a primeira-ministra discursar no encerramento do congresso dos tories, no dia 3 de Outubro.

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