"Brexit": Cuidado com o que desejas

Uma sondagem resultante de várias sondagens recentes indicava que o “Remain” ganharia ao “Leave” por 52% contra 48%. O resultado invertido do referendo de Julho de 2016.

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1. "Cuidado com o que desejas.” O velho provérbio foi utilizado recentemente por um analista britânico, Neal Lawson (na Open Democracy) para resumir o grau de indefinição que continua a envolver o destino do Reino Unido sobre o seu lugar na Europa. A questão pode colocar-se assim: se houvesse outro referendo, como votariam os britânicos? Os que não querem sair, ainda acreditam que, depois de dois anos de confusão e desorientação generalizada, o pragmatismo levá-los-ia a rever a sua posição. Nada de mais incerto. Uma sondagem resultante de várias sondagens recentes indicava que o “Remain” ganharia ao “Leave” por 52% contra 48%. O resultado invertido de Julho de 2016. Demasiado estreito para garantir a vitória.

“Pobres dos eleitores britânicos não filiados, que olham para as conferências do Outono [do Labour e dos Conservadores] à procura de inspiração”, escreve a Economist  num dos editoriais da sua última edição. “Os dois grandes partidos estão hipnotizados pelo 'Brexit'.” O Labour já teve a sua conferência anual, que terminou na quarta-feira. Os tories  começam hoje a sua, com uma agenda de tema único: como sair.

2. As negociações com Bruxelas entraram num impasse, sobretudo desde o confronto a que se assistiu em Salzburgo, na reunião informal dos líderes europeus. Esperava-se um ambiente de maior conciliação, quando as negociações entram na sua fase final. Houve crispação de parte a parte e, dos parceiros europeus de Theresa May, uma clara rejeição do seu “plano Chequers”, apresentado como a derradeira oferta negocial, mas ainda longe de algumas “linhas vermelhas” contidas no mandato aprovado pelos outros 27 Estados-membros.

As dificuldades continuam a estar na “indivisibilidade” do Mercado Único, ao qual o Reino Unido não pode ter acesso apenas nas “liberdades” que lhe convêm, com a questão da fronteira irlandesa como pomo central da discórdia. O Governo britânico continua a insistir em que não haverá qualquer tratamento de excepção para os imigrantes oriundos da União Europeia – a livre circulação é uma das quatro liberdades do Mercado Único. A recusa em estabelecer um controlo de mercadorias algures entre a Irlanda e a Grã-Bretanha, para deixar aberta a fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, abre as portas à liberdade de circulação de mercadorias, que Bruxelas não aceita sem que haja alguma espécie de restrições. Bruxelas espera uma clarificação durante a conferência conservadora. May já avisou que não tenciona alterar o seu plano.

3. O risco maior que envolve as negociações, quando faltam seis meses para a data de saída e apenas meia dúzia de semanas para a data prevista para concluir um acordo, já não parece estar na distância que separa as duas partes. Está, sim, na crescente contestação à primeira-ministra, vinda do seu próprio partido e da incerteza que paira sobre o congresso dos conservadores. Sabe-se que será uma tempestade, faltando apenas saber se de grau 5, com risco de destruição total, ou de grau menos elevado, que deixará destroços, arrancará telhados, derrubará algumas árvores, mas não matará a continuação das negociações conduzidas por Theresa May.

Os radicais do "Brexit", dos quais a figura mais emblemática é Boris Johnson, vão para Birmingham dispostos a destruir o “plano Chequers”, que vêem como uma “traição” ou uma “rendição”. Os mais radicais falam em “vassalagem”. Querem um corte total. Com se o Reino Unido passasse a ser, digamos, o Canadá. Será o momento para avaliar quem tem mais apoio nas hostes conservadoras. May endureceu o discurso nos últimos dias, admitindo que é melhor não haver acordo do que um mau acordo. É um caminho perigoso.

4. O congresso do Labour terminou na quarta-feira passada, em Liverpool, sem que se possa dizer que houve uma clarificação da posição do partido sobre o "Brexit". Jeremy Corbyn, que virou o Labour decididamente para a esquerda, tentou evitar um compromisso demasiado explícito. Falhou, em parte, o seu objectivo. Não queria que a conferência abrisse as portas à hipótese de um segundo referendo com a mesma pergunta: ficar ou sair. A pressão das bases, mais a intervenção de alguns dirigentes importantes, entre os quais Keir Starmer, o ministro-sombra para o "Brexit", acabaram por levar à adopção de uma moção que não exclui essa possibilidade.

Muitos membros do Parlamento, sobretudo os que são eleitos em círculos mais distantes das grandes metrópoles ou nos antigos bastiões industriais do Norte da Inglaterra, duvidam que haja uma mudança de sentido do voto entre os seus eleitores, muitos dos quais votaram pela saída. Uma boa parte das bases do partido, incluindo as mais jovens ou o que resta do New Labour, insistem em que ainda é possível reverter o processo. “Sim a Corbyn, não ao Brexit” - frase bem legível em muitas T-shirts nas ruas de Liverpool.

Corbyn, que vem da velha ala esquerdista do Labour dos anos 1980, nunca gostou da Europa (votou contra a adesão, submetida a referendo em 1975) e, mesmo reconhecendo que os tempos mudaram, não é um entusiasta. O seu objectivo é ganhar as eleições. O que lhe interessa são as reformas económicas radicais que foram aprovadas na conferência. O "Brexit" adapta-se. “Bruxelas desenrolou a passadeira vermelha para Jeremy Corbyn”, escreve o site Politico.eu, referindo-se ao encontro do líder trabalhista com Michel Barnier, na quinta-feira. O negociador europeu afirmou que “não estava a negociar”, apenas a “recolher opiniões”. Mas, como refere o mesmo site, receber com pompa o líder da oposição dois dias antes do início do congresso do Partido Conservador britânico onde May joga a sua sorte, não é propriamente um acto amistoso para a primeira-ministra britânica.

“Cuidado com o que desejas” é um aviso que também se pode aplicar à União Europeia. Nem o europeísmo de Corbyn é de molde a fazê-lo correr riscos políticos pela Europa; nem a opinião pública britânica, alimentada há décadas pela fúria antieuropeia dos tablóides, mas também por um sentimento de orgulho (legítimo) no seu passado europeu, se deixará simplesmente vencer pelo puro pragmatismo.

5. Não há tema mais divisivo na política britânica do que a Europa. Sempre foi assim desde o fim da II Guerra, quando a integração europeia passou do sonho à realidade como o único caminho para evitar que os europeus se autodestruíssem ciclicamente. Foi Winston Churchill quem apelou aos Estados Unidos da Europa no Congresso de Haia, em 1948. Com uma ressalva: o velho leão britânico deixava de fora o seu país.

Dois anos antes, noutro célebre discurso em Fulton (Missouri), Churchill tinha avisado para a nova ameaça que as democracias europeias enfrentavam: “De Stettin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro caiu sobre o continente…”. A Guerra Fria e a economia foram os dois grandes motivos para a adesão do Reino Unido à então Comunidade Europeia, que se concretizou apenas em 1973, depois de De Gaulle ter abandonado o Eliseu e levado consigo o veto à entrada de um país que, apesar de ter ajudado a salvar a França do opróbrio, continuava a ver como um “cavalo de Tróia” dos americanos.

O Partido Conservador teve líderes com um profundo sentimento europeu, como Edward Heath, que liderou as negociações de adesão. Nos anos 1980 e parte da década seguinte, o Labour foi consistentemente antieuropeu, como era anticapitalista e antimilitarista. Em 1994, Tony Blair mudou de rumo. Durante os seus 10 anos de mandato, o Reino Unido ganhou uma influência crescente, por vezes decisiva, nas decisões tomadas em Bruxelas. Nesses anos, os conservadores foram mudando de líder a cada derrota, com a Europa a “amarrá-los” ao estatuto de oposição. David Cameron representava uma nova geração igualmente eurocéptica mas muito longe de pretender abandonar o barco. Jogou a Europa na roleta do referendo para acalmar internamente o seu partido. Nunca esperou o resultado. As consequências da sua decisão continuam a ensombrar os conservadores e o seu país.

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