Entre os nus de Mapplethorpe e o parafuso: a distância de Serralves à Pasteleira

Na Pasteleira, as polémicas notícias de Serralves passam. Mas não entram. Está a vida no bairro forçosamente apartada da arte de um museu? As opiniões e queixas dos vizinhos de Serralves. E a história de um parafuso que se fez metáfora

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Manuel Roberto

“Sabes porque é que o bairro não vai a Serralves? Porque nós somos pobres e Serralves é para os ricos.”
Conceição Soares ajeita-se na cadeira de plástico como quem acomoda os pensamentos. À porta da Associação de Moradores do Bairro Antigo da Pasteleira, compõe o avental rosa vivo. Abana a cabeça e prossegue a argumentação, entre o facto consumado e o lamento das coisas que não têm remédio: “Alguma vez o bairro é para ali chamado?!”

Pasteleira e Serralves são quase siamesas no mapa da cidade. Das janelas de algumas casas do bairro vêem-se os jardins do museu. Mas a rua que separa os edifícios amarelo pálido e o muro de pedra a circundar os jardins do museu fez-se fosso profundo entre dois mundos. A polémica exposição de Robert Mapplethorpe e a demissão do director do museu bateram à porta do bairro? “Isso não é connosco”, conforma-se Jorge Cunha, sob o aceno dos dois vizinhos do lado.

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As opiniões atropelam-se perante o desafio inesperado. Aos cinco moradores que desfiavam conversa à porta da associação, bloco 13 do bairro com mais de 1500 moradores, vai-se juntando mais gente. Palpite de um lado, provocação do outro, gargalhada geral. E Jorge Vidal, o presidente, a pôr ordem na agenda: “O que aconteceu foi a demissão do director”, comunica. E logo Rosa, anexada à conversa há poucos segundos, se lembra do que ouviu na televisão por estes dias: “É por causa dos nus!”

Vidal despega-se da galhofa para deixar uma opinião organizada. “Pode escrever”, apela: “Se a exposição traduz o sexo tem de ter um letreiro. Acho bem que exista, mas as crianças não podem ver.” Camisola vermelha, grave semblante, calças de ganga a prender um molho de chaves: “Se a administração interferiu está mal. Eu também me demitia.” Palavra de presidente.

Debate-se o “benefício zero” da condição de vizinho de Serralves quando, ao fundo da rua, entalada entre dois blocos do bairro, se avista “Cocas”. José Silva no Cartão de Cidadão. “Oh Cocas, tem calma que o Benfica ganha para a semana”, brinca uma moradora, a aludir ao empate da equipa da Luz em terras transmontanas na noite anterior: “Queres um pastel de Chaves?”. Risada faustosa de um lado, um aviso a enterrar o tema do outro: “Sou do Benfica até morrer”.

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José “Cocas” é figura emblemática do bairro. E jornalistas não são novidade para ele: pai do “Siga”, o “rei da Pasteleira”, que há uns anos se fez notícia pelas suas fugas à policia, Silva deu na altura várias entrevistas a jornais. Foi à televisão. E só lamenta que isso não lhe tenha valido uns trocos extra.

Em Serralves, entrou uma única vez. Nada que o impeça de formular teorias sobre as fotografias da discórdia no Museu de Arte Contemporânea.
— A professora não ensina o nu nas escolas? Então não pode estar numa exposição porquê?
— Então achas bem pornografia?! É verdade que a canalha agora já nasce ensinada... Mas aquilo era uma quinta antes. Não acho jeito nenhum aquela exposição.

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José “Cocas” encolhe os ombros — “esta é revolucionária”, segreda perante o confronto de Rosa, para logo deixar soar alto: “Vê lá se queres voltar aos anos 70!” E a vizinha de resposta pronta: “Nos anos 70 a gente namorava no R/C e aparecia grávida no primeiro andar.” José “Cocas” desiste do debate. Leva um parafuso na mão e anuncia estar apenas de passagem para a drogaria mais próxima: o trabalho avolumou-se por estes dias e precisa de comprar mais peças. Mas a urgência não é coisa que vença quem passa no bloco 13. “É o conforto de passagem”, comenta, baixinho, o presidente da associação. “Cocas” pede um copo, deixa-se ficar mais um pouco.

No bairro, as notícias de Serralves passam, mas não entram. Não há visitantes habituais do museu no grupo ali formado. Aventuram-se no território vizinho no Serralves em Festa, na celebração de Outono deste fim-de-semana. Eventos de portas abertas, sem bilhete pago. Pouco mais do que isso. Regalias de proximidade, garantem, não existem: nessa matéria, Serralves está tão longe deles como de Campanhã. Um divórcio sem brigas, apenas um divórcio: “Nunca negociámos nada com Serralves. Nem nós fomos lá, nem eles cá”, admite Jorge Vidal, morador há nove anos, presidente há quatro, antigo trabalhador da Singer e ex-guardião da igreja da Lapa. “Claro que um bairro também pode ir a um museu”, responde, assertivo, quando questionado pelos porquês do afastamento: “Mas há uma distância tão grande entre aquilo e isto”, aponta a aceitar uma espécie de destino traçado: “Talvez não seja para nós... mas quem sabe um dia a gente fale.”   

Comprar couves em Serralves

No Café Carlos, noutro bloco do bairro, esmiúçam-se memórias de cenários inverosímeis para os mais pequenos. “Isto era a Quinta de Riba d’Ave”, aponta Manuel Nogueira, 47 anos de vida e de bairro, logo corrigido por Marta Ferreira, a proprietária do café: “A Quinta do Conde, era assim que eu lhe chamava”. Manuel sorri como se ainda fosse miúdo na Pasteleira e deixa-se levar pelas lembranças pueris: “Entrava por um portãozinho de metal que ainda hoje existe e ia lá buscar couves. A caminho da [escola] Leonardo Coimbra apanhávamos laranjas, sempre de olho nos cães para não nos apanharem.”

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Arquitectada para residência privada pelo segundo Conde de Vizela, Carlos Alberto Cabral, a casa e parque de Serralves ergueram-se entre 1925 e 1944. Mas a família não ficou ali por muitos anos. Em 1955 a propriedade era vendida a Delfim Ferreira, Conde de Riba d’Ave, sob o compromisso de manter o espaço tal e qual como era. E três anos depois, os primeiros moradores da Pasteleira ocupavam o bloco 1 do bairro ali ao lado.

Margarida Cunha, ao balcão do café, ouve a conversa e acrescenta uns pozinhos. Não se alonga sobre a controvérsia dos quadros de Mapplethorpe ­— “ouvir falar ouvi, mas entra a 100 e sai a 200, a gente aqui tem mais em que pensar” —, mas deixa-se ficar se o desafio é falar sobre a Pasteleira e “Serralves antigo”: “Ia lá buscar o leite à lavradeira”, recorda, “a minha filha vai fazer 40 anos, veja há quanto tempo foi.” Margarida traz letras tatuadas no braço esquerdo: P D P R: “São os nomes dos meus netos: Pedro, Diogo, Paulo e Rafael.” É com eles — e os três filhos — que ocupa o pensamento. Por eles, jura agarrar-se bem às muletas este fim-de-semana e esquecer as dores para passear na Festa do Outono de Serralves. “Nesses dias a gente vai. Agora o resto... não nos diz respeito.”

A cidade passa ao lado da Pasteleira. Há dias, dezenas de pessoas manifestaram-se pela alegada “censura” a João Ribas. A poucos metros dali e tão distante. De manhã e ao fim da tarde, carros de alta cilindrada passam para apanhar as crianças no Colégio Francês. A poucos metros e milhares de quilómetros. Um casal de turistas pedala por ali, alheio a rótulos de zona perigosa. Na Pasteleira sem saberem. Museu e bairro partilham uma geografia, mas são universos apartados. Não se olham, não se vêem, nunca se tocam.

Será que “nascer numa viela inclinada de Lordelo”, como questionava em 1994 Luís Fernandes, no prefácio da obra Pasteleira City, do morador Raul Simões Pinto, “traça a sina a um homem”? Será a vida no bairro forçosamente apartada da arte de um museu? “Ninguém quer saber de nós, a menos que haja roubos, aí já falam do bairro”, queixa-se Jorge Cunha.

Quadros em paredes brancas de assinatura Pritzker não amansam o quotidiano, às vezes bravo, de quem ali mora. Mas engane-se quem vê no bairro apenas um caldo de tristezas. Naquele, plantado em zona nobre da cidade, criou-se e ganhou a sua primeira alcunha (“Carlos Tarado Musical”) o letrista Carlos Tê. Por ali, passou Aurélia Monteiro (a “Lela” ou “Ceguinha dos 9”), musa da escultura da Menina Nua que milhares fotografam, ainda hoje, na Avenida dos Aliados. “Aqui Serralves passa ao lado”, concede Marta Ferreira como se desse a sentença alheia a dilemas da elite. Serralves está tão longe da Pasteleira que nem o sonho de Serralves, de cultura e saber, parece caber ali. Mas não ir a exposições é apenas uma linha na definição deles. O bairro é um manifesto colectivo: gente nas ruas, nomes decorados, alcunhas para quase todos, gargalhadas sem aviso prévio, paradigmas de lealdade talvez alheios a museus.

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Jorge Vidal acaba de mostrar os troféus que enchem a associação de orgulho e José “Cocas” ainda ali está, sentado numa cadeira no “corredor do conforto”. Não foi à drogaria comprar os parafusos, mas “Xerife” pôs-se no carro e foi lá por ele. “Cocas” estende a mão já recheada dos objectos metálicos e mostra a cultura que ali verdadeiramente importa: “Quem tem amigos não morre na cadeia.”

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