“Sentiu uma palmada na zona dos seus glúteos”

Daqui a uns anos um acórdão deste tipo será uma aberração, mas, actualmente, é normal dentro da nossa jurisprudência.

Ficou provado em tribunal que estando a Maria embriagada na casa de banho do bar-discoteca, perdeu a consciência, altura em que o Jorge, segurança da discoteca, verificando a incapacidade da Maria de “reger a sua vontade e de ter consciência dos seus actos”, resolveu ter – e teve –? "relações sexuais de cópula vaginal completa, depois de a ter despido da cintura para baixo, mantendo-lhe a roupa a meio das pernas”. A Maria só recuperou a consciência quando, ainda na casa de banho, deitada no chão, com a cabeça encostada à porta de entrada, sentiu um empurrão na porta (e na cabeça...), ouvindo nesse momento as vozes do arguido Jorge e do arguido Mário, barman da discoteca, pretendendo este último entrar também na casa de banho. Momentos depois, a Maria perdeu novamente a consciência só voltando a recuperar os sentidos quando, ouvindo, de novo, as vozes do Jorge e do Mário, “sentiu umas palmadas na zona dos seus glúteos, apercebendo-se também nesse momento que estava com os calções de ganga, as meias-collants e as cuecas que usava naquele dia puxados até à zona dos joelhos, o que imobilizava os seus movimentos da cintura para baixo, e que se encontrava posicionada de bruços, com o tronco totalmente apoiado na área do lavatório”. Voltou a Maria a perder, mais uma vez, a consciência, só voltando a recuperá-la quando já se encontrava sentada no sofá do bar-discoteca estando nessa altura já vestida da cintura para baixo e estando junto de si o Jorge e o Mário, tendo um deles atirado com água para o seu rosto. Provou-se, também, que estando a Maria inconsciente, o Mário mantivera igualmente com ela relações sexuais de cópula vaginal completa.

Estes factos deram origem a uma condenação do Jorge e do Mário a quatro anos e seis meses de prisão, cada um, pela prática do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, mas com pena suspensa; o que levou o Ministério Público (MP) do tribunal do julgamento a recorrer para o Tribunal da Relação do Porto (TRP), pedindo que o Jorge e o Mário fossem para a prisão cumprir as penas que lhes tinham sido aplicadas, por assim o impor o “sentimento jurídico da comunidade”. Sublinhou o MP no seu recurso que nenhum dos arguidos tinha manifestado “qualquer ato revelador da interiorização do desvalor da sua conduta, designadamente confissão ou arrependimento”, e que não era admissível “deixar perpassar na comunidade uma ideia de impunidade de uma acção tão grave como aquela pela qual os arguidos tinham sido condenados”.

No entanto, os juízes desembargadores Maria Dolores da Silva e Sousa e Manuel Soares, no passado dia 27 de Junho, não concordaram com a argumentação do MP e optaram por manter a suspensão da pena considerando que “as circunstâncias em que ocorreram os factos, as condições de vida dos arguidos, pretéritas e presentes. e a personalidade dos arguidos” permitiam concluir que as finalidades da punição poderiam ser alcançadas com a simples ameaça de prisão e a censura do facto.

Importa dizer que quando o MP recorreu pedindo a prisão efectiva, não tinha uma qualquer agenda política ou social nem pretendia agradar a associações militantes de causas, sejam elas quais forem, como parece entender a Associação Sindical dos Juízes Portugueses no comunicado que emitiu na passada segunda-feira. O MP limitou-se a defender uma posição absolutamente defensável em termos legais e, no meu entender, correcta em termos existenciais. O TRP decidiu de outra forma, mantendo a suspensão da pena, o que é igualmente defensável em termos legais, mas, no meu entender, lamentável em termos existenciais. Estou absolutamente convencido que, daqui a uns anos, um acórdão deste tipo será uma aberração mas, actualmente, é normal dentro da nossa jurisprudência.

De alguma forma, como afirmou a penalista Teresa Beleza, "são milénios de tradição de submissão e desigualdade que pesam sobre nós” e não é “fácil mudar formas de ver que tanto nos condicionam, quantas vezes de forma inconsciente”. Enquanto esperamos pela evolução das “formas de ver”, talvez não fosse má ideia escrevermos na lei que as relações sexuais sem consentimento são, pura e simplesmente, violação, acabando com este eufemismo do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência que, objectivamente, encobre e desvaloriza penalmente efectivas violações.

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