Jovem baleado descreve "um cenário de pânico". "Não houve um agente que dissesse 'já está bom'"

Celso Lopes foi baleado a 5 de Fevereiro de 2015 por um agente na Esquadra de Alfragide com uma bala de borracha. “Senti que a minha vida estava em risco”, disse ao Tribunal de Sintra.

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Imagem da lesão na perna de Celso Lopes, fotografado dias depois dos acontecimentos Enric Vives-Rubio

No dia 5 de Fevereiro de 2015 Celso Lopes foi almoçar a casa, na Cova da Moura, fazendo um intervalo do seu trabalho num projecto da Universidade de Aveiro, que decorria naquele bairro. Eram por volta das 13h30 e ouviu um tiro, seguido de outros quatro. Secretário da mesa da assembleia geral da Associação Moinho da Juventude, veio a saber depois pelos pais que a PSP tinha detido um jovem, Bruno Lopes, na Rua do Moinho

Quando foi à Esquadra de Alfragide tentar saber o que tinha acontecido, Celso Lopes viu três agentes à porta, dois deles a “apressarem-se para entrar”. Aproximou-se, com Flávio Almada. Disse “boa tarde” e pediu para falar com o chefe. O agente recusou. “Tive a percepção que não seria possível estabelecer qualquer tipo de diálogo porque a postura era muito hostil”, relatou nesta sexta-feira ao colectivo de juízes do Tribunal de Sintra, que está a julgar 17 agentes da PSP acusados pelo Ministério Público de falsificação de auto, tortura e racismo contra seis jovens da Cova da Moura, entre eles Celso Lopes, Bruno Lopes e Flávio Almada. Os polícias negam as acusações e defendem que houve tentativa de invasão da esquadra.

“Puxei do telemóvel e no momento em que estou a fazer a chamada ouço: ‘malta, cheguem aqui’", contou Celso Lopes. "Vejo entre 15 a 20 agentes a formarem um cordão, a carregarem contra nós com bastonadas, insultos, a dizerem ‘pretos do caralho’.”

De acordo com a sua versão do que aconteceu a 5 de Fevereiro de 2015 — num depoimento que irá continuar na próxima sessão pois só houve tempo para a presidente do colectivo de juízes do Tribunal de Sintra, Ester Pacheco, lhe fazer algumas perguntas — Celso Lopes tentou evitar ser atingido por pontapés e bastonadas.

“Há um agente que empunha uma caçadeira. Tentei dizer para ele não disparar, ele fez um disparo para o chão” — e essa bala acertou-lhe na perna. “Estupefacto com tudo aquilo”, percebeu que tinha sido alvo de outro disparo na coxa esquerda, contou. “O agente diz: 'Este tem que ficar.' Ele e outro atiram-me para o chão. Imobilizam-me, senti dois joelhos a apertar-me contra o pavimento."

Ao tribunal, contou ainda que tentou dizer ao polícia que estava a ficar com falta de ar. “E ele diz: ‘Preto vais morrer’ (…) O meu pensamento foi: ‘Já fiquei.' Senti que a minha vida estava em risco, não estava a conseguir respirar.”

Viu Flávio Almada a ser agredido com “agentes em cima dele”. A ele, Celso Lopes, atiraram-no para cima de um pneu, contou ainda no tribunal. Outro polícia disse, segundo relatou: “A merda é para estar no chão." Puseram-lhe o seu cachecol na cara: “Vocês vão morrer, o vosso bairro de merda vai acabar, a vossa raça de merda vai ser eliminada.” Os jovens ficaram no chão, naquela posição, deitados no chão — “com o sangue à nossa volta”. 

No tribunal, Celso Lopes comentou: “Aquilo era para nós um cenário de pânico constante. O que é estranho é que não houve em momento algum um [agente] que dissesse: 'Calma lá.' Não houve uma única pessoa que tivesse coração ou a sensibilidade para dizer ‘já está bom’. É isso que me faz mais confusão.” 

Tensão no interrogatório

O interrogatório a Celso Lopes foi marcado por alguma tensão, com a juíza a querer que o jovem se limitasse “aos factos” e ele a tentar introduzir um contexto mais geral para explicar o que sentira nesse dia. 

A acusação do Ministério Público divide-se em dois momentos: um primeiro, em que uma equipa da PSP vai à Cova da Moura fazer patrulhamento e detém Bruno Lopes, alegando que este tinha atirado pedras à carrinha da polícia — aí, o agente terá disparado dois tiros e atingido duas moradoras; um segundo, quando amigos deste jovem, entre eles um membro da direcção do Moinho da Juventude, instituição galardoada com prémio de Direitos Humanos da Assembleia da República, se dirigem à esquadra para pedir esclarecimentos mas acabam detidos e acusados de invasão da esquadra.

"Este senhor não é arguido"

Momentos antes, na inquirição anterior a Flávio Almada — que se deslocou ao tribunal para terminar o depoimento iniciado há uma semana — a juíza criticou a advogada dos agentes, Isabel Gomes da Silva, por querer escrutinar uma música da autoria de Flávio Almada, insinuando que era um “contra-senso” alguém que aprendeu técnicas de comunicação não-violenta — algo que Flávio Almada dissera na sessão anterior — escrever uma letra contra a polícia. “Está mais que assumido que este homem tem músicas de contestação contra os polícias, e se calhar contra os tribunais. Tem músicas de protesto. A verdade é que vivemos num estado democrático, não é verdade?”, comentou a juíza.

E face à insistência da advogada, a juíza afirmou: “Com o devido respeito, estamos a inverter os termos da situação. Este senhor é ofendido, não é arguido. O que a sôtora está a tentar fazer já percebemos, mas não é esse o caminho. Já percebemos que este homem tem músicas de contestação à polícia. É cultura de bairro e nós temos a obrigação de a conhecer.”  

A inquirição de Celso Lopes prossegue na próxima terça-feira, de manhã.

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