Merkel recebe Erdogan e troca a tensão pelo pragmatismo

Durante mais de um ano, as relações entre a Alemanha e a Turquia foram marcadas pela animosidade. Visita de líder turco não é sinal de que está tudo bem, mas de que há muitos assuntos pendentes.

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Manifestação contra a visita de Erdogan, em Berlim Reuters/CHRISTIAN MANG

Mal tinha o Presidente turco, Recep Erdogan, aterrado no aeroporto de Berlim e já recebia más notícias. A candidatura turca para organizar o campeonato europeu de futebol de 2024 acabava de ser derrotada em favor precisamente da Alemanha. Para piorar ainda mais o dia, Erdogan era recebido por protestos logo no aeroporto e também à sua chegada ao hotel no centro da capital alemã.

O “homem forte” da Turquia chega à Alemanha numa altura em que as feridas abertas nos últimos anos estão ainda por sarar. Esse sentimento ficou patente num editorial do jornal Bild, o diário mais vendido na Alemanha, que defendia ser demasiado cedo para receber Erdogan, que há pouco mais de um ano acusava os dirigentes alemães de “práticas nazis”. “É demasiada pompa e circunstância para Erdogan, ainda não estamos lá”, escreveu o jornal.

A visita de três dias não significa que as relações entre os dois países tenham regressado ao normal. Foi o próprio Presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, a dizê-lo numa entrevista ao grupo de comunicação RND: "Esta visita não é um sinal de normalização."

A chanceler Angela Merkel vai estar com Erdogan três vezes, segundo a Reuters, mas recusou participar no banquete oferecido por Steinmeier ao seu homólogo turco no Palácio Bellevue, na sexta-feira. Outros dirigentes políticos também rejeitaram o convite e criticaram a visita. O líder dos liberais do FDP, Christian Lindner, disse que a estadia de Erdogan na Alemanha – a primeira desde que assumiu a presidência – é uma “vitória da propaganda”.

O líder turco encara a visita como uma ocasião para refazer uma relação ferida. Na véspera, Erdogan publicou um artigo de opinião no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, em que defendia um “virar de página”, com um foco na economia. “Estamos a tentar alcançar o objectivo de intensificar o nosso comércio e os nossos laços comerciais. Em nome da prosperidade e do futuro dos nossos dois países, vamos aumentar os nossos interesses mútuos e reduzir os nossos problemas”, escreveu Erdogan.

Porém, no mesmo artigo, Erdogan voltou a abordar um tema que está na raiz de várias das controvérsias entre Berlim e Ancara. O líder turco apelou às autoridades alemãs que designem a rede fundada pelo imã Fethullah Gülen como grupo terrorista. A organização do clérigo exilado nos EUA é responsabilizada por Erdogan pela tentativa de golpe de Estado do Verão de 2016 e cuja resposta foi muito criticada pela Alemanha e vários outros países – sob o pretexto do golpe, Erdogan afastou os críticos da sua governação da Administração Pública, Exército, tribunais, jornais, escolas e universidades. Entre os milhares de detidos estavam alguns com nacionalidade alemã, incluindo o correspondente do jornal Die Welt, Deniz Yucel.

Meses conturbados

O ponto mais baixo nas relações entre alemães e turcos está relacionado com a recusa do Governo alemão em autorizar os comícios que Erdogan queria realizar durante a campanha para o referendo do ano passado junto da vasta diáspora turca no país. Furioso, o Presidente turco acusou Berlim de “práticas nazis” e instou os emigrantes na Alemanha a não votarem em Merkel. O ambiente tornou-se pesado e sucederam-se episódios que demonstram o mal-estar entre os dois países, como foi o caso da renúncia do futebolista de origem turca Mesut Ozil à selecção alemã, argumentando ser vítima de discriminação.

É neste contexto que Erdogan aterrou esta quinta-feira em Berlim. A visita é sobretudo um exercício de realismo político, entre dois países que não se podem manter durante muito tempo de costas voltadas. “A relação entre os dois países é complexa com muitos aspectos diferentes, desde a questão dos refugiados aos laços económicos, e os milhões de turcos que vivem na Alemanha”, disse à Al-Jazira o especialista em relações internacionais, Mensur Akgun.

O acordo assinado entre a União Europeia e a Turquia há mais de dois anos, em que Ancara se comprometeu a impedir a saída de refugiados do Médio Oriente para a Europa a troco de ajuda económica, é um dos pontos cruciais. A crise migratória europeia atingiu profundamente a Alemanha, desde que no Verão de 2015 Merkel anunciou uma política de “portas abertas” aos refugiados que fugiam à guerra da Síria. Quase um milhão de requerentes de asilo chegaram ao país até que a chanceler recuasse. Porém, a extrema-direita promoveu o espectro da “islamização” da Alemanha e conseguiu ganhos políticos, tornando-se na terceira força política após as eleições de há um ano.

O acordo garantiu à Turquia um papel crucial na articulação com a União Europeia, ao mesmo tempo que as esperanças – e a vontade – de uma adesão são cada vez mais diminutas. “Em relação aos refugiados a cooperação irá continuar no interesse de ambos os lados. A actual política humanitária funciona para a satisfação tanto da Turquia como da UE, e a Alemanha tem uma grande contribuição para o acordo”, escreve o especialista do Centro Carnegie para a Europa, Marc Pierini.

A economia assume igualmente um papel determinante para que Berlim e Ancara desçam a tensão. A Turquia tem passado os últimos meses mergulhada numa crise monetária, com a lira a desvalorizar 40% desde o início do ano face ao dólar, na sequência da imposição de taxas pesadas por parte dos EUA, devido à prisão de um pastor norte-americano.

Qualquer sinal de crise na Turquia deixa os patrões da indústria alemã em desassossego. No quadro da UE, a Alemanha é o país com mais empresas representadas na Turquia, incluindo gigantes como a Siemens ou a Bosch. “Uma crise bancária na Turquia iria atingir os bancos europeus e mais de 6500 empresas alemãs com negócios no país”, prevê o analista Can Baydarol, citado pela Al-Jazira.

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