Adultério descriminalizado na Índia: “O marido não é dono da esposa”
Lei do período da colonização britânica, em vigor há 158 anos, foi revogada por ser “arcaica, arbitrária e inconstitucional”.
O Supremo Tribunal da Índia declarou esta quinta-feira que a lei da era vitoriana que punia um homem por ter relações sexuais com uma mulher casada deixou de estar em vigor, por ser “inconstitucional e discriminatória” para mulheres.
A secção 497 do Código Penal, em vigor há 158 anos, estabelecia que qualquer homem que tivesse relações sexuais com uma mulher casada sem permissão do marido dela estava a cometer adultério e podia ser acusado. Caso fosse condenado, estava sujeito a uma pena de prisão de até cinco anos, a pagar uma multa, ou ambas as coisas.
Os cinco juízes do Supremo encarregados do caso concordaram por unanimidade que a lei era “arcaica, arbitrária e inconstitucional”.
Segundo o juiz Dhananjaya Chandrachud, citado pela BBC, a lei “perpetuava a subordinação da mulher, negava dignidade, autonomia sexual, e baseava-se em estereótipos de género”, já que a mulher não podia ser responsabilizada, porque o homem é considerado o “sedutor”. Mas se o seu marido cometesse adultério contra si, a mulher nada podia fazer.
No veredicto desta quinta-feira, o juiz presidente Dipak Misra disse que, embora possa levantar questões civis, como o divórcio, o adultério não pode “ser uma ofensa criminal”. “O marido não é dono da esposa. As mulheres têm de ser tratadas com igualdade”, acrescentou.
Também a juíza Indu Malhotra revelou estar céptica em como “uma relação consensual entre dois adultos, que seria uma disputa matrimonial, seria um crime contra a sociedade”, segundo o jornal indiano Live Law.
O juiz Chandrachud foi mais longe: “A mulher tem autonomia sexual dentro do casamento. A sociedade impõe-lhe virtudes impossíveis, pondo-a num pedestal, confina-a a determinados espaços. Trata-a como um objecto e diz que deve ser pura, mas não hesita em violá-la, abusar dela, discriminá-la e cometer feticídio feminino.”
“A sociedade tem dois códigos morais distintos para julgar homens e mulheres”, acrescentou.
O Governo indiano (conservador hindu), que já tinha resistido a este cenário três outras vezes, mostrou o seu descontentamento perante a revisão da lei, ao dizer que a sua anulação vai ter “um impacto negativo na santidade do casamento e na sociedade”, segundo o jornal The Indian Express. Sugeria que a lei fosse adaptada para ser neutra face aos dois sexos. Nesse cenário, o adultério permaneceria um crime, mas puniria homens e mulheres.
“As mulheres não são diferentes dos homens”
A ratificação foi impulsionada depois de um cidadão indiano residente em Itália ter questionado a legalidade da secção 497 do Código Penal. Joseph Shine, empresário de 41 anos, redigiu uma petição de 45 páginas ao Supremo Tribunal para a abolição da lei, que, segundo ele, “discriminava indirectamente as mulheres por supor erradamente que estas são propriedade dos homens”.
“Mulheres casadas não são um caso especial no que toca a acusação de adultério. As mulheres não são de forma alguma diferentes dos homens”, diz a petição.
Shine apelava à inconstitucionalidade da lei perante artigos sobre direito à igualdade, que proíbem a discriminação de religião, raça, casta, sexo e local de nascimento e que protegem a vida e liberdade pessoal. A secção 198 era também alvo de escrutínio, já que permitia ao marido vítima de adultério apresentar queixa, mas não o contrário.
Ainda que não existam dados quanto ao número de homens condenados por adultério, o advogado de Shine, Kaleeswaram Raj, declarou à BBC que a lei era “frequentemente usada de forma indevida” em cenários de divórcio e de disputas matrimoniais.
“Os homens apresentavam queixa contra outros homens, que diziam estar a cometer adultério com as suas esposas. Estas acusações nunca eram provadas, mas manchavam a reputação das mulheres”, disse Raj.
A presidente da Comissão Nacional para as Mulheres na Índia, Rekha Sharma, celebrou a alteração da lei, que “devia ter sido abolida há muito”. “Apesar de os britânicos já se terem livrado dela, nós ainda estávamos presos à lei”, disse, segundo o The Guardian.
O veredicto surge depois da abolição da lei que criminalizava a homossexualidade, também da era colonial e uma das mais antigas do mundo, no início de Setembro – dizia que o sexo entre homossexuais era um “delito antinatural”.
Texto editado por Ana Gomes Ferreira