O anticarrasco

O exercício da Medicina Prisional deve, pela sua natureza, manter-se indiferente ao tumulto social.

Pedófilos, pena de morte já! Na falta desta, prisão perpétua, castração química e, para termos segurança absoluta, física também. Estas pessoas merecem um carrasco. Alguém cruel, insensível e perverso, sem quaisquer remorsos ou sentimentos de culpa ao executar o seu trabalho. E o seu trabalho é executar uma sentença de morte. Ou não.

Nas últimas décadas, Portugal amanheceu para o abuso sexual de crianças e adolescentes, considerado como “o mais hediondo dos crimes” e reputando-se o perpetrador em conformidade, vulgarizando-se termos como, por exemplo, “predador”, “molestador”, “monstro”, etc. Estabeleceu-se consenso quanto à repulsa por esta prática.

Investigação, detenção, julgamento, condenação e cadeia. A prisão é, para muitos, ainda assim, o mal menor... para alguns prontificados carrascos, ideal mesmo seria a castração ou, até mesmo, o extermínio!

Posto isto impõe saber-se: destituem-se os execráveis pedófilos, condenados e presos, dos seus direitos e, em particular, o direito à saúde? Se não, então há alguma diferença, qualitativa ou quantitativa, nos cuidados a prestar? Altera-se a relação médico-doente ou psicólogo-cliente? Dispensam-se cuidados deliberadamente incompletos?

Como médico do Estabelecimento Prisional da Carregueira, em marcha rápida para acudir os reclusos/doentes urgentes, já ouvi expressões do tipo: “Sr. Dr. não se apresse, se ele morrer não se perde nada...!” ou “O Dr. sabe o que ele fez?” A reprovação social sente-se também dentro da prisão. Em virtude da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Constituição da República Portuguesa, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e da minha própria consciência decorre que não concebo, em contexto prisional, outra senão uma medicina holística, baseada na evidência e na excelência da praxis clínica.

O pedófilo já acumula a pena judicial com o asco comunitário. Acresce que não me cumpre a mim, seu médico, amputar a minha prática, instigado por preconceitos, moral, antipatias... Ab initio, ambiciono com os reclusos uma proximidade que sustente uma relação de consolidada confiança, num ambiente eminentemente hostil. Criam-se, assim, as condições para uma orientação clínica bem-sucedida cujos “frutos” são a estabilidade física e mental, adesão terapêutica e, consequentemente, a diminuição do número de pedidos de consulta, de necessidades de medicação e de exames complementares de diagnóstico. Além disso, considero que persistem os seus direitos à alimentação saudável, ao trabalho e à baixa médica por doença, ao lazer, à manutenção das consultas de especialidades hospitalares, aos cuidados paliativos, ao respeito, à atenção e ao carinho.

Isto é tanto mais importante sabendo que, do ponto de vista clínico, são indivíduos muito apelativos, ansiosos, muitas vezes deprimidos, com estados clínicos díspares e, não raramente, muito vulneráveis e, até, terminais.

O exercício da Medicina Prisional deve, pela sua natureza, tanto quanto possível, manter-se indiferente ao tumulto social suscitado pelos casos de condenação por abuso sexual de maior ou menor notoriedade mediática.

Em Portugal não existe pena de morte nem prisão perpétua pelo que, por mais grave que seja o crime cometido, a pena de prisão efectiva não excede os 25 anos. O abuso sexual de crianças e adolescentes é um crime com um forte impacto negativo nas vítimas, na sua família e na comunidade. Se os abusadores sexuais (homens ou mulheres) devem ser responsabilizados pelos crimes cometidos? Sem dúvida. Se a pena de prisão, de 25 anos que seja, é suficiente para garantir uma mudança efectiva de comportamentos? Não, não é.

Como psicóloga, defendo que a responsabilização deve ser complementada com processos de intervenção terapêutica, numa perspectiva multidisciplinar. Ainda dentro da prisão, é fundamental estabelecerem com os diversos profissionais uma relação de confiança. Sentirem que continuam a ser sujeitos de direitos e que não vivem rodeados de carrascos, mas sim de pessoas que acreditam que o ser humano não se resume aos seus comportamentos. Após a prisão, é fundamental manter o processo de intervenção terapêutica, diminuindo a probabilidade de recidiva.

Importa ainda pensar de uma forma mais abrangente. Criar estruturas de apoio onde as pessoas que sentem necessidade de ajuda possam dirigir-se. Tantas vezes, ainda, antes de cometerem o primeiro crime.

Os abusadores sexuais são, também, seres humanos, que podem aprender a mudar comportamentos. Haja quem os ajude nesse processo.

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