Soberania na boca de palhaço é piada

Tal como um palhaço a repetir as palavras “nação” e “soberania” não fica menos palhaço, também um líder político nacionalista não consegue fazer o nacionalismo deixar de ser aquilo que ele hoje é: uma fraude moral e política.

Se há coisa que impressiona na assembleia plenária da ONU é o silêncio. Um plenário de diplomatas não é a mesma coisa que um plenário de parlamentares. Mesmo quando os políticos estão presentes na Assembleia Geral, o desenrolar dos trabalhos faz-se numa atmosfera morosa, ponderada e sonolenta, como se de um templo se tratasse.

Uma coisa é certa: ninguém estaria à espera de se rir na cara do chefe de Estado do país anfitrião, Donald Trump. Mas aconteceu: primeiro um riso abafado, depois uma gargalhada que se espalhou pela sala quando Trump começava o seu discurso já lançado nas fanfarronices do costume. Foi um momento de fraqueza — ou de franqueza — humana que nos deu acesso àquilo que o mundo pensa de Trump. Infelizmente, não é possível pô-lo em linguagem diplomática: o atual Presidente do país mais poderoso do mundo é uma anedota global.

O que aconteceu deverá levar a Administração Trump, ferida no seu orgulho, a agir com mais sobranceria ainda em relação às Nações Unidas. Prevê-se que Trump vá ainda mais fundo na retórica nacionalista que o trouxe até aqui — e que repetiu na parte do seu discurso da ONU que os outros países, já recompostos, conseguiram ouvir sem se rir. Só que a retórica não é melhor do que o orador: pelo contrário, a retórica nacionalista é a piada. Trump é somente um embrulho especialmente caricato para esse conteúdo.

Tal como um palhaço a repetir as palavras “nação” e “soberania” não fica menos palhaço, também um líder político nacionalista não consegue fazer o nacionalismo deixar de ser aquilo que ele hoje é: uma fraude moral e política.

A frase que os assessores de Trump esperavam que ficasse do seu discurso é a seguinte: “Rejeitamos a ideologia do globalismo e aceitamos a ideologia do patriotismo.” Um troll anónimo de rede social não diria melhor. Infelizmente para ambos, o globalismo não é uma ideologia e o patriotismo também não. A globalização é uma realidade, que podemos querer regular ou não. E o patriotismo é um sentimento transversal a várias ideologias.

Aquilo de que Trump quer falar é do nacionalismo — a ideia de que cada nação é um compartimento estanque e que só as nações, em geral dominadas por um homem forte, são sujeitos de direito internacional — contra o cosmopolitismo, ou seja, a ideia de que sendo os direitos humanos universais e a dignidade inerente a todos os humanos, todos os humanos são de certa forma cidadãos do mundo e por isso merecedores de terem os seus direitos protegidos e de participarem na tomada de decisões que lhes dizem respeito. A ONU é historicamente o espaço onde se fez o compromisso entre a realidade de um mundo de Estados-nação, na Carta das Nações Unidas, e um horizonte moral cosmopolita, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A esse compromisso podemos chamar “internacionalismo”. Ao seu método de trabalho, multilateralismo. É o que nos tem dado alguma paz e esperança no mundo desde a II Guerra Mundial. É aquilo que Trump rejeita em nome do nacionalismo.

Só que mesmo o nacionalismo na boca de Trump não passa de uma permanente contradição nos termos, uma máscara para o imperialismo do costume. No seu discurso, Trump promete aos outros países: “Os EUA não vos dirão como viver, trabalhar, ou rezar: só vos pedimos que respeitem a nossa soberania em troca.” Até aqui tudo normal. Passado algumas frases, Trump já se está a dirigir aos países produtores de petróleo e diz-lhes: “Queremos que parem de subir os preços, queremos que desçam os preços. Não vamos aceitar estes preços horríveis por muito mais tempo.” Onde está então a soberania de cada país e o direito a vender os seus recursos ao preço que quiser? Umas frases adiante, vocifera que a Alemanha deve “imediatamente mudar o curso da sua política energética”. Onde está o respeito pela soberania de um país que compra energia a quem achar melhor? Poderíamos prosseguir: sob que justificação pode Trump sancionar as empresas europeias que negoceiam com o Irão? Só os EUA é que têm direito a soberania, ou também pode haver soberania na Europa? Como nacionalista, Trump é um hipócrita. Não admira; ainda está para aparecer o político nacionalista que não o seja, porque o nacionalismo é insustentável num mundo cada vez mais integrado.

Tão interessante quanto a frase de Trump sobre a rejeição da “ideologia do globalismo” é o lugar do discurso em que ela aparece: no parágrafo sobre como os EUA não reconhecem ao Tribunal Penal Internacional (TPI) “jurisdição, legitimidade ou autoridade”. Então o que tanto irrita Trump no TPI que o leve a acusá-lo de ser “globalista”? O TPI é uma instância judicial internacional cujo mandato está exclusivamente limitado a casos de crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra. Outros presidentes americanos reagiram contra este mandato por quererem proteger as tropas americanas nas suas guerras e intervenções militares no estrangeiro. Que Trump mascare as mesmas razões em conversa sobre patriotismo e globalismo, demonstrando a sua aversão a uma instituição que se destina precisamente a não deixar impunes as mais graves violações contra a soberania dos outros — seres humanos ou países — é apenas o que fica de uma piada de mau gosto.

Sugerir correcção
Ler 36 comentários