Mudanças nas redes municipais ameaçam preços da electricidade

Entre o risco de aumento de preços, de limitação da concorrência e das divergências com as autarquias, há várias nuvens a pairar sobre o lançamento dos concursos para as concessões municipais da distribuição eléctrica. Municípios do Porto e de Lisboa ficam fora do mapa proposto pelo regulador.

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Governo quer lançar em 2019 os vários concursos para as concessões municipais de electricidade Manuel Roberto

A procissão ainda vai no adro, mas é mais que certo que os concursos para a atribuição das novas concessões municipais da distribuição de electricidade em baixa tensão (BT), previstos para 2019, vão ser fonte de muitas polémicas nos próximos meses.

Não só porque envolvem as vontades e interesses de 278 municípios e da actual concessionária, a EDP Distribuição, mas também porque o processo acarreta riscos, como o de criar mais custos para os consumidores e o de limitar a concorrência na actividade de distribuição eléctrica durante as duas décadas em que, segundo a lei, deverá durar cada novo contrato de concessão.

São esses alguns dos alertas contidos nos pareceres (e declarações de voto) dos conselhos consultivo e tarifário da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) ao documento que esta entidade colocou em consulta pública durante o Verão. E onde apresentou propostas para os elementos dos cadernos de encargos e para a delimitação territorial das novas concessões das redes que fazem a luz chegar a casa dos portugueses.

Com base na Lei 31/2017, que exigia que as novas concessões não subissem custos para os consumidores e para o Orçamento do Estado, fossem economicamente eficientes e assegurassem a coesão territorial, a ERSE realizou estudos e concluiu que cada área terá de ter pelo menos 600 mil clientes e apresentou três cenários possíveis: duas propostas com cinco zonas e uma terceira que divide o país em duas únicas concessões,

A consulta pública terminou a 17 de Setembro e a entidade reguladora deve agora atender às recomendações e comentários recebidos, antes de enviar a proposta final ao Governo. Mas a tarefa não será fácil, até porque parecem existir muitas interrogações

Por exemplo, no parecer do conselho tarifário (onde se sentam lado a lado a EDP Distribuição, as associações de defesa do consumidor e outras entidades como a direcção-geral do consumidor) fala-se em “sobrecustos não quantificados pela ERSE”. Frisa-se que os estudos do regulador não determinam “o aumento de custos decorrente da fragmentação da distribuição em baixa tensão, em função da perda de economias de escala, nem o aumento de custos para o sistema que decorrerá da separação da gestão da baixa tensão e da alta tensão/média tensão [empresas e indústria]”, que continuará entregue à EDP Distribuição, já que se trata de uma concessão nacional.

O parecer do conselho consultivo (onde também estão a EDP, a REN, consumidores, comercializadores e a Concorrência, entre outros) alerta ainda para eventuais custos relacionados com os actuais contratos de prestação de serviços de apoio às concessões (nem todos poderão ser transmitidos para as novas concessionárias), ou com os activos partilhados entre concessões de BT e que são indivisíveis.

O PÚBLICO questionou a ERSE sobre se concorda com a possibilidade de se verificarem sobrecustos e sobre quem os pagará, mas a entidade reguladora lembrou que recebeu “mais de 80 contribuições”, incluindo de “particulares, sindicatos, associações, cooperativas, municípios, comunidades intermunicipais, agentes do sector e outros potenciais interessados”. E remeteu as respostas às questões levantadas pelos seus conselheiros para o documento que acompanhará a proposta final a enviar ao Governo, que regulamentará os concursos e respectivos procedimentos.

O operador de distribuição em BT é responsável pela rede que leva a luz à casa das famílias e pequenos negócios. A actividade é regulada, tem proveitos garantidos pelas tarifas e a EDP Distribuição serve 99,5% dos cerca de seis milhões de consumidores. Para este ano, as receitas líquidas estimadas da actividade são 423 milhões de euros, destinadas quase na íntegra à EDP Distribuição, que no ano passado lucrou 235 milhões.

Os consumidores suportam os custos de exploração do operador (que tem ainda outras missões como a leitura dos contadores, a disponibilização das leituras aos comercializadores, a facturação e cobrança aos comercializadores das tarifas de acesso às redes e o restabelecimento do fornecimento eléctrico) e também remuneram os investimentos na rede (a uma taxa de 5,75%, de acordo com as tarifas de 2018). Além disso, suportam as rendas que são pagas aos municípios pelas concessões (258 milhões de euros).

Na declaração de voto que anexa aos pareceres, a EDP Distribuição não poupa as críticas ao modelo que aí vem. Diz que “a eventual fragmentação funcional e geográfica” da actividade destruirá sinergias e economias de escala “com impacto muito negativo sobre os custos suportados pelos consumidores”.

Também acarreta “riscos operacionais para a qualidade de serviços e segurança do abastecimento”, refere a concessionária, que perante a mudança de figurino se arrisca a perder fatias do território, ou a ter de pagar mais do que as actuais rendas de concessão para segurar as autarquias.

A difícil geometria das concessões

No parecer do conselho consultivo há uma nota clara de discordância e vem da AdC. A entidade absteve-se na votação do documento por considerar que “na globalidade” as recomendações “não relevam suficientemente as questões de concorrência”. Em declarações ao PÚBLICO, fonte oficial da AdC manifestou preocupação com a dimensão das novas concessões e com a duração dos contratos (os 20 anos previstos na lei).

Se o parecer do conselho consultivo admite que as áreas sugeridas podem não ser economicamente sustentáveis e até aponta que se ponderem áreas maiores, a AdC defende que “mais do que identificar uma proposta de delimitação territorial em concreto”, seria importante promover a “participação de um maior número de operadores” nos concursos.

Afirmando que se está a “sobrestimar a relevância da dimensão para a eficiência em termos de custos”, a AdC sustenta que “quanto maior a agregação das áreas territoriais” mais difícil será a entrada de pequenos operadores na corrida e piores serão os efeitos para a concorrência. Para que os operadores menores não sejam excluídos à partida e para “potenciar a existência de uma pluralidade de entidades interessadas em concorrer às diversas concessões”, a AdC sublinha que é importante acautelar que não são impostos “entraves desnecessários”, como por exemplo fixar requisitos (sejam financeiros, prazos, garantias, ou exigências de experiência prévia) “desproporcionais e desadequados”.

A AdC diz ainda que uma concessão excessivamente longa “limita a frequência” com que uma actividade é “sujeita à concorrência pelo mercado e cria barreiras à entrada a novos operadores”. Notando que a legislação do sector eléctrico “atenua os riscos” de “recuperação do valor dos investimentos que possam advir da duração das concessões” e até prevê que no fim da concessão os bens revertam para o município e que a concessionária cessante seja indemnizada, a AdC diz que, à luz da directiva europeia sobre a adjudicação de contratos de concessão, não vê razões que justifiquem um prazo “além de cinco anos”.

Já é certo que as propostas territoriais terão de ser redesenhadas pois há autarquias que rejeitam as divisões sugeridas pelo regulador. Se os 17 municípios da Área Metropolitana do Porto (AMP) decidiram avançar como um lote único a concurso, como confirmou ao PÚBLICO o presidente do conselho metropolitano e autarca de Vila Nova de Gaia, Eduardo Vítor Rodrigues, os 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa estão a aguardar a conclusão de um estudo para “decidir se é mais vantajosa a distribuição directa [assegurada por cada município] ou a participação no concurso”. Se a opção for o concurso, então será “sempre a Área Metropolitana a concorrer” sozinha e não integrada em qualquer outra área, assegurou o secretário metropolitano João Pedro Domingues.

Decidido está, também, que os municípios da AMP e da AML querem passar a assegurar a gestão directa da rede de iluminação pública, que no modelo actual está associada às concessões da distribuição e que é um dos terrenos férteis das divergências entre a EDP Distribuição e as autarquias (está na origem, por exemplo, de um litígio de 2,3 milhões de euros iniciado pela Câmara de Matosinhos contra a empresa).

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