Debate sobre limites aos salários dos gestores chega ao Parlamento

O Estado deve intervir para reduzir a diferença salarial que existe dentro das empresas? A questão divide opiniões em todo o mundo e prepara-se para ser discutida pelos partidos na Assembleia da República.

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António Costa abriu a discussão sobre os salários altos em Portugal com críticas à disparidade na EDP. Rui Gaudêncio

O PS prepara-se para abrir a porta à discussão no Parlamento de medidas para limitar a desigualdade salarial dentro das empresas, mas ainda não decidiu como se vai posicionar em relação ao projecto de lei apresentado pelo Bloco de Esquerda e que será debatido no Parlamento na sexta-feira. O assunto está a ser tratado entre a direcção do grupo parlamentar do PS e a Juventude Socialista (JS) - que em 2016 apresentou uma moção ao congresso sobre o tema - e ainda não foi abordada de forma alargada com os restantes deputados. A decisão, adiantou ao PÚBLICO o líder da JS, Ivan Gonçalves, será tomada “nos próximos dias”.

O projecto do BE, apresentado em meados de Agosto, não impõe directamente tectos máximos às remunerações dos gestores de topo. Mas propõe que o Governo defina um diferencial máximo de referência entre a remuneração mais alta e a remuneração mais baixa paga pela mesma empresa, determinando depois que, nos casos em que o leque salarial ficar acima do valor de referência, as empresas sejam impedidas de participar em arrematações e concursos públicos ou ainda de beneficiar de subsídios e apoios do Estado destinados ao tecido económico e à criação de emprego.

A iniciativa do BE surgiu na sequência de declarações do primeiro-ministro, António Costa, sobre as políticas salariais das empresas e a diferenças entre o salário mais alto e o salário médio nas empresas do PSI-20 . “Não é possível pagarem tanto a quem está no topo e tão baixo a quem está noutros escalões”, disse o chefe do Governo em entrevista ao Expresso, em meados de Agosto, referindo-se em particular à EDP.

O BE mostra-se disponível para acolher contributos e propostas que outros partidos queiram dar. “É preciso que sejamos consequentes relativamente à indignação que manifestamos com este tipo de desigualdades indecentes e injustificadas. Demos o primeiro passo, mas queremos que esta seja uma causa não apenas nossa, mas da democracia, e estamos por isso inteiramente disponíveis para trabalhar em conjunto com todos, na especialidade”, afirmou ao PÚBLICO o deputado José Soeiro.

Embora os socialistas ainda não tenham decidido se admitem viabilizar o projecto do BE ou se, pelo menos, vão pedir que baixe à comissão do Trabalho e Segurança Social para discussão, é certo que estão disponíveis para discutir o tema que há muito vem sendo abordado pela JS. Foi, de resto, o tema de uma moção apresentada no XXI congresso socialista, em 2016. No documento, subscrito por duas dezenas de jovens socialistas (entre os quais o presidente, Ivan Gonçalves, e o vice-presidente da bancada parlamentar socialista, João Torres), notavam que o valor dos salários do altos quadros executivos em Portugal “é francamente desproporcional face aos salários mínimo e médio das respectivas empresas”. E defendiam a adopção de mecanismos de regulação “adequados e eficientes”. Nesse sentido, recomendavam ao PS que desencadeasse o debate na concertação social com vista à criação de um mecanismo para limitar de forma proporcional os salários dentro de cada organização, e a penalização das empresas cujo salário mais elevado exceda 20 vezes o salário mais baixo, através do agravamento das contribuições para a Segurança Social.

O PÚBLICO questionou o presidente da JS, Ivan Gonçalves, sobre se admitem viabilizar o projecto do BE ou se pedem a baixa à comissão sem votação. Mas o líder disse que a posição a adoptar ainda não foi discutida. “Nos próximos dias teremos novidades”, afirmou. A resposta poderá ser dada já nesta terça-feira, durante um debate promovido pelo BE para discutir as desigualdades salariais, onde marcarão presença a líder bloquista, Catarina Martins, e o presidente dos jovens socialistas.

Do ponto de vista do Governo, parece estar posta de lado a possibilidade de o tema entrar nas discussões do Orçamento do Estado para 2019. Até ao momento, e apesar das declarações do primeiro-ministro, o tema ficará apenas na esfera do Parlamento.

Debate motivado pela crise

A disparidade salarial entre os gestores de topo e os trabalhadores menos qualificados das grandes empresas ganhou relevo, especialmente desde a crise financeira internacional, no debate público em diversos países, discutindo-se modelos de intervenção do Estado nesta matéria, mesmo quando se está a falar de empresas do sector privado.

Nos Estados Unidos, a cidade de Portland deu um passo ambicioso em 2016, impondo um imposto adicional de 10% sobre os lucros às empresas cujo CEO ganhe 100 vezes mais do que a média dos seus trabalhadores. Na cidade de São Francisco, o mesmo tipo de proposta irá brevemente ser votada, depois de a nível estatal a Califórnia ter discutido e rejeitado a mesma ideia. Noutros estados como Minnesota, Rhode Island, Connecticut, Illinois e Massachusetts, o tema está a ser discutido.

Na Suíça, a ideia que esteve em cima da mesa apertava ainda mais o nível de desigualdade, limitando a diferença entre os salários dos gestores das empresas e os salários mais baixos dos trabalhadores a um rácio de 1 por 12. A proposta chegou a ser levada a referendo, mas chumbou numa votação realizada em 2013.

No Reino Unido, Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista na oposição, tem vindo a defender a aplicação nas empresas públicas de uma regra que limita a 20 o número de vezes que o salário dos gestores pode ser maior do que o salário mais baixo da empresa, ponderando a aplicação da mesma exigência a empresas privadas que entrem em concursos públicos.

Este tipo de propostas surge em resposta às críticas generalizadas que se ouvem relativamente ao nível dos salários dos gestores de topo de algumas das principais empresas quando comparados com o resto dos trabalhadores, mas um consenso está longe de se encontrar quanto à melhor forma de combater o fenómeno. O Estado deve intervir ou são as próprias empresas que se devem auto-regular? Se o Estado definir limites, deve fazê-lo para todos ou só para as empresas que beneficiam de apoios públicos? Ao limitar os salários, o Estado pode colocar em causa a competitividade das empresas do país? Estas são algumas das questões colocadas e para as quais encontrar uma resposta comum tem sido difícil.

Intervir ou não intervir? Opiniões dividem-se

Ricardo Paes Mamede, economista e um dos oradores da conferência organizada esta terça-feira pelo BE, considera que “faz sentido introduzir limites [aos salários] nas empresas públicas e influenciar os leques salariais nas privadas” e reconhece que o projecto do BE coloca questões pertinentes. “Até que ponto é admissível que uma empresa - com leques salariais extremamente elevados, que decorrem do elevado recurso a mão-de-obra mal paga, e onde os gestores, por auto-deliberação porque muitas vezes são os proprietários da empresa, são remunerados a taxas muito elevadas - receba apoios do Estado? Parece-me claramente que isso não deveria acontecer?”, defende.

Paes Mamede assinala contudo que outro tipo de medidas poderia também ter um papel importante, assinalando que “boa parte do problema dos leques salariais” pode ser atacado através de medidas relacionadas com a governança das empresas, seja introduzindo critérios relacionados com a composição das comissões de remunerações, regras sobre o poder dos pequenos accionistas na fixação das remunerações dos gestores, ou na transparência dos critérios para a fixação dos salários dos gestores.

De qualquer forma, assinala, as medidas direccionadas para os altos salários dos gestores terão sempre um impacto relativamente reduzido na redistribuição dos rendimentos e na redução da desigualdade como um todo, “porque uma parte importante da desigualdade na distribuição dos rendimentos tem a ver, por um lado, com a propriedade do capital e, por outro, com as qualificações da população e com o padrão da estrutura produtiva portuguesa”, justifica.

Tiago Borges, responsável na Mercer pela área das remunerações, diz que vê em algumas empresas a preocupação de olharem para os rácios salariais assumindo como política tentar elevar os níveis salariais mais baixos, de forma a que fiquem acima do Salário Mínimo Nacional ou, no caso das multinacionais, de forma a garantir uma qualidade de vida mínima para os colaboradores.

No entanto, teme que um limite como o proposto pelo BE possa trazer um efeito negativo: “como é mais complicado aumentar a massa salarial para atingir o rácio desejado, pode surgir a tendência de descer a remuneração dos executivos para cumprir o rácio”. “O problema é que essa eventual baixa pode dificultar a capacidade de as empresas atraírem executivos de topo com as qualificações e a experiência necessária para gerir negócios que são tipicamente complexos”, afirma.

João Cerejeira, professor da Universidade do Minho, não vê vantagem na definição de limites pelo Estado. Diz que “o Estado já intervém no valor dos salários, seja através da fixação do salário mínimo, seja através das portarias de extensão”, alerta que “uma descida dos salários dos gestores não implica necessariamente um aumento dos salários dos restantes trabalhadores, podendo apenas se traduzir numa transferência de rendimento dos gestores para os accionistas”. E defende que o impacto ao nível da desigualdade global seria sempre “muito reduzido”.

Ainda assim, considera que há um papel a desempenhar pelos reguladores nesta matéria, incentivando “uma maior transparência dos processos de decisão das empresas, nomeadamente das empresas cotadas”. “O que acontece é que quando o accionista tem pouco poder no processo de decisão da empresa [na definição dos salários dos gestores], por exemplo quando a estrutura accionista é muito dispersa, o gestor tem um poder discricionário maior, e maior capacidade de capturar “rendas” em detrimento do interesse dos accionistas”, afirma o economista.

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