O Outono do nosso contentamento

Depois de uma vasta panorâmica ficcional, um romance breve. Uma utopia sobre um encontro improvável entre Ocidente e Oriente, uma alegoria sobre um mundo pré-apocalíptico.

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A Nossa Alegria Chegou: romance de questionação da possibilidade (da utopia?) de um futuro harmónico para um planeta em clivagem imparável Rui Gaudêncio

A Nossa Alegria Chegou parece levar à letra um preceito que surge, quase camuflado, no primeiro romance de Alexandra Lucas Coelho: “A realidade é sempre má ficção.” (E a Noite Roda, Companhia das Letras, 2.ª ed., 2017) Na sua mais recente obra de ficção, a autora optou claramente por inflectir em relação ao apego à realidade histórica, a essa espécie de etnografia ficcional que amimava notoriamente Deus-Dará (Tinta-da-China, 2016). Desse modo, em vez de criar sobre uma realidade pré-existente, ampla e explicitamente documentada, Lucas Coelho, desta vez, ficcionou de raiz a realidade do seu romance. Tempo e espaço são emanações do universo ficcional por si criado. Alendabar, lugar efabulado, existe num tempo que não chega a determinar-se com exactidão, mas apenas se insinua como próximo de um qualquer apocalipse, iminente na chamada vida real. Avós “nascidos em nações inimigas, que se massacravam” (p.148), cidades com inúmeros habitantes “invisíveis, milhões que não bebiam água potável” (p.159), lançam ténues indicações que fazem deste novo romance uma distopia impronunciável. No fim de contas, tais presenças não serão assim tão distantes dos “proletários do apocalipse” que circulam por Deus-Dará; no entanto, em A Nossa Alegria Chegou, aquelas figuras adquirem uma feição mais difusa, menos representativa e mais marcadamente simbólica.

Possivelmente, neste novo romance, o cenário de um mundo possivelmente distópico nunca chega a revelar-se integralmente porque não será esse um dos propósitos deste projecto narrativo. Este visa muito menos uma exposição “naturalista” do que um alcance alegórico, em que a figura de um prepotente e infirme “Rei” — nefasto reinol: na verdade, líder de uma autocracia de contornos indefinidos, que “alimenta um universo paralelo” (p.28) de desmandos e crueldades — se representa menos a si mesmo do que a própria noção de poder e de iniquidade. Como, de certa forma, a tríade central do livro, constituída por Ira, Ossi e Aurora, figura sobretudo a ideia de revolução e liberdade, actualizada na narrativa por via de uma existência à margem das convenções e, por fim, no contexto de uma revolução que derruba a perversa “monarquia”. E mesmo Ursula e Felix, na sua trajectória em direcção a Alendabar, depois de “contornar o planeta” (p.24), com o objectivo de fazer chegar até àquele território as cinzas do marido falecido, constituem uma manifestação das noções fortes de génese e de ciclo da vida. A ingestão parcial das cinzas do morto, a constante remissão para os mitos da criação de Alendabar, a sobrevivência mesma desses tempos imemoriais de fábula — “os primeiros cactos do mundo” (p.29) — aproximam irremediavelmente esta dupla de personagens de uma consideração, também ela, de teor alegórico, ou, pelo menos, marcadamente simbólico. O ponto para que convergem estas três linhas da narrativa — um trio, um Rei e uma dupla — é, precisamente, Alendabar. A estratégia narrativa nuclear do romance, e um dos mecanismos centrais desta ficção, é gerada pelo tempo da acção. Ao contrário do tempo histórico, que, repisemo-lo, permanece deliberadamente esquivo ao longo de toda a narrativa, o breve arco temporal em que decorrem os acontecimentos do romance é marcado de forma expressa: o equinócio de Outono — “Norte e Sul iluminados por igual, o dia com a mesma duração da noite, doze horas de luz” (p.20). Esse lapso de tempo será assinalado, ao longo de A Nossa Alegria, através do movimento aparente do Sol e por meio da distância, gradualmente menor, a que o astro-rei se encontra da linha do horizonte, até que essa proximidade não exceda “dois dedos da água” (p.179). Trata-se de um marcador que assinalará a passagem do tempo e que há-de intensificar o ritmo da narrativa, rumo à solução dos conflitos. É por esse motivo que os capítulos de A Nossa Alegria Chegou começam no Doze para terminarem no Um, que marca, precisamente, o momento final das doze horas que estruturam o fluxo da narrativa. Mesmo a cronologia esporádica, atinente a certos episódios particulares da ficção, é assinalada por esse padrão astronómico, pelo que a marcação temporal recorre, com alguma frequência, a estratégias do discurso que informam sem determinar excessivamente — “Muitos equinócios atrás” (p.39). A estruturação dos acontecimentos mediante esse calendário solar encontrará paralelos com outro género de meridianos — “E seria o fim do Oriente ou o princípio do Ocidente? Haveria diferença entre as duas coisas?” (p.84) À medida que o Sol “marcha” para o horizonte, as noções de nascente e poente confundem-se, interpenetram-se, questionam-se na sua realidade e no sentido que podem fazer. Assim, Oriente e Ocidente deixam, hipoteticamente, de ser realidades antagónicas para configurarem um todo. É, talvez, esse o fundo utópico que este romance potencia. A resistência e a revolta como instrumentos para uma mudança que chega a um estádio melhor das coisas — “O bem é a luta.” (p.122); “A alegria é a revolução” (p.182). O próprio título do romance vai nesse sentido. A alegria que chega, por fim, coincide com o derrube do regime autoritário do “Rei” deposto.

Alexandra Lucas Coelho tende, na sua linguagem, para a precisão, porfiando pela eficácia das escolhas vocabulares. Por exemplo, na alternância de verbos —“Uma orla florejante bordeja o areal, extensíssimo. Num extremo da praia, a falésia negra, encostada a um vulcão. No outro, a foz de um rio incandescente, que ao subir alarga muito e tem uma ilha no meio. Para o interior, é a grande razia das pastagens” (p.24) “Bordejar” dará lugar ao verbo “alargar”, e só no fim se permite que o resvaladiço verbo “ser” feche a descrição. É de salientar a construção de pequenos quadros frásicos e imagéticos, alguns deles com um poderoso impacto. Estes vão da minimalista mas impressiva nota de “cactos gigantes através da vedação” (p.28), de possíveis ressonâncias simbólicas, até à apropriação dos elementos naturais, tornados tensos instrumentos descritores — “O sol está uma lança, vertical. Ira molha a cabeça no rio, entra em casa a pingar.” (p.93) Uma ilusória simplicidade que lembra Juan Ramón Jiménez, quando este diz: “Que difícil é o fácil!” Uma das técnicas com as quais a autora apura o rigor e a exactidão é o recurso à linguagem científica — “O sono que se segue ao grande curto-circuito (espasmos, taquicardia, hiper-oxigenação, redução da actividade do córtex, estouro de neurotransmissores: orgasmo). (…) Ossi estende o braço por cima de ambos, aperta-os contra o corpo. Também está quase a adormecer (oxitocina, dopamina)” (p.26). Um recurso que, de resto, lembra a abertura de Deus-Dará: “A lâmina desliza na mão de Lucas: frontal, parietal, occipital, temporal.”

Este romance não constitui uma arquitectura complexa e muiltímoda, à maneira de Deus-Dará. A sua orgânica é mais sucinta e contida. Romance breve, construído com base num tropismo mais concentrado, tende para um ponto de fuga bem definido: a eliminação do mal. Em vez de disseminar um vasto painel de construções múltiplas, paralelas que se hão-de encontrar num ponto indefinido do infinito, este romance concentra-se num destino narrativo de clara exactidão. A união dos contrários, convergência de hemisférios que se concretiza, simbolicamente, por acção da trajectória aparente do Sol, até que se alcance um equilíbrio, e o dia e a noite decorram na mesma extensão temporal. Dia e noite passam a significar, metaforicamente, Ocidente e Oriente, territórios afluentes e em vias de desenvolvimento. A própria indefinição temporal e de espaço poderá concorrer para a filiação utópica do romance. A Nossa Alegria Chegou seria, portanto, um romance de questionação da possibilidade (da utopia?) de um futuro harmónico para um planeta em clivagem imparável.

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