A arquitectura pode ser determinante na prevenção do suicídio

Está provado que restringir o acesso a determinadas estruturas arquitectónicas tem tido um “impacto muito positivo” na diminuição da taxa global de suicídio

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Adriano Miranda

Em Maio de 2015, o então ministro da Saúde, Paulo Macedo, inaugurou o serviço de internamento de psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (ULSBA). Tinham sido investidos 3,2 milhões de euros num edifício moderno, amplo, cheio de luz, que vinha resolver uma situação marcada pelo insólito: a região do país que registava o mais elevado índice de suicídios era a única, a nível nacional, que não dispunha de uma unidade de internamento. No decorrer da primeira visita que o PÚBLICO fez ao novo edifício, poucos dias antes da sua inauguração, constatou-se a azáfama dos operários na instalação de uma barreira no terraço da nova unidade hospitalar, que seria transformado num espaço de lazer para os doentes internados. Alguém tinha lançado o alerta, que forçou a obras apressadas de última hora. O alto do terraço podia transformar-se num local susceptível de incentivar saltos para a morte num local construído precisamente para a evitar.

Um ano depois de se ter resolvido o problema na nova unidade de internamento no hospital de Beja, um jovem pôs termo à vida saltando do alto de um silo de cereais que se encontrava abandonado, há várias décadas, na Rua da Lavoura, junto à estação ferroviária de Beja. Este dramático acontecimento, assim como a intervenção no hospital, foram alguns dos exemplos citados durante o debate sobre “A arquitectura e a Saúde Mental”, que decorreu no departamento de psiquiatria da ULSBA no âmbito das iniciativas que integram o “Setembro Amarelo”. Este evento foi criado no Brasil em 2015 para incentivar à prevenção do suicídio. Beja foi a primeira cidade do país a aderir ao movimento em 2017.

Desconfortável com a associação da arquitectura a práticas suicidárias, o professor da Universidade Lusíada, Fernando Hipólito, apelou durante o debate que se realizou nesta sexta-feira em Beja a uma maior interacção entre a arquitectura e as preocupações da classe médica. Mas não deixou de frisar que não são as estruturas que incentivam ao suicídio. “Se [a arquitectura] existe, é porque existe vida”, assinalou.

A psiquiatra Ana Matos Pires, presidente da Direcção da ARIS, a entidade responsável pelas actividades do “Setembro Amarelo” e directora do departamento de psiquiatria da ULSBA, propôs à Universidade Lusíada que uma turma do mestrado integrado em Arquitectura se deslocasse a Beja para desenvolver propostas de reabilitação do silo e edifícios envolventes. Durante cinco dias, os alunos executaram três projectos: um hotel com SPA, uma residência e laboratórios para estudantes e uma escola com um mercado na expectativa que o exemplo pudesse ajudar a Câmara de Beja a encontrar uma solução — segura — para o espaço que se encontra abandonado e degradado há várias décadas.

Porque a prevenção do flagelo passa sobretudo pelas intervenções que possam ser feitas no acesso a locais que do ponto de vista arquitectónico alimentem os desígnios do potencial suicida. É um dado adquirido, refere Sónia Silva, que integra o corpo de seis psiquiatrias na ULSBA, que a restrição do acesso aos locais mais susceptíveis, “é uma das poucas intervenções para a qual está provada haver uma evidência muito forte de efectividade no que toca à sua prevenção” e que tem tido um “impacto muito positivo” na diminuição da taxa global de suicídio. No entanto, só por si, esta forma de prevenção deve estar associada à procura de ajuda e à vigilância e intervenção por pessoal treinado.

Nos estudos que têm sido realizados à análise das estruturas públicas mais utilizadas pelos suicidas, Maria Teresa Valadas, também médica psiquiatra na ULSBA, enumera a trucidação por comboio (que em Beja não se coloca pelas razões que são conhecidas), afogamento, enforcamento e precipitação de local elevado.

Sem dados fiáveis

As fontes onde Teresa Valadas recolheu a informação (ULSBA, notícias, GNR, PSP, Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo e Administração da Região Hidrográfica do Alentejo) acabaram por expor graves lacunas sobre o que existe para que se possam tomar medidas.

Os dados sobre o número de poços existentes no distrito de Beja revelam um sinal preocupante: das 13 câmaras municipais a quem Teresa Valadas solicitou informação, responderam seis (Alvito, Cuba, Ferreira do Alentejo, Mértola, Ourique e Serpa).

A comparação destes dados com as informações recolhidas junto da Administração Regional Hidrográfica do Alentejo (ARHA) e o Estudo dos Recursos Hídricos Subterrâneos do Alentejo (ERHSA) revela inexplicáveis disparidades. No caso de Serpa, que é extensível aos outros municípios, a autarquia diz que existem 20 poços, a ARH sobe o seu número para os 214 e o ERHSA enumera 201.

Um problema ignorado

O debate de sexta-feira serviu para analisar um problema que a cidade de Beja discute e quer ver superado: acabar com a reputação que o silo grangeou pelas piores razões. Tanto mais porque permanece acessível como local para suicídio e para as crianças e jovens fazerem provas de “coragem”, continuando-se a assistir a correrias e saltos à beira de um precipício com quase 50 metros de altura. “A exigência ética impõe-nos uma intervenção intensa e determinada na prevenção do suicídio, mas sozinhos pouco podemos fazer”, criticou Ana Matos Pires, salientando o alheamento ds instituições da região face ao que se esteve a discutir neste mês de Setembro. Ao fim de cinco anos de permanência no departamento de psiquiatria, diz sentir-se “frustrada” por se encontrar praticamente sozinha na sensibilização das pessoas para a prevenção do suicídio, lembrando que é necessário salvar vidas que num dado momento e pelas mais variadas razões se sentem perdidas “sem apoio e sem uma voz amiga”.

“O nosso trabalho terá resultados mais reduzidos se fecharmos o departamento de psiquiatria à cidade”, vincou Ana Pires Jorge, disposta a insistir na discussão de temas e matérias que interceptem com a prevenção do suicídio. E lamentou que as autarquias do distrito “não estejam disponíveis para ouvir falar de alternativas no combate a esta patologia”. Mesmo assim, a directora do departamento de psiquiatria da ULSBA espera que “a esperança não fique por aqui”.

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