Não varrer a casa ao diabo (1)

O Papa não é o diabo como os tradicionalistas pensam, nem vai deixar o diabo à solta na Igreja, como desejam.

1. As narrativas do Novo Testamento insistem em dizer que a linguagem que o Nazareno preferia era a das parábolas. É muito incómoda porque não se lhe pode fixar um sentido único. Muitos cristãos lamentaram, e ainda lamentam, que os autores dos textos dos Evangelhos tenham perdido tempo com histórias enigmáticas. Seria preferível um catecismo, com uma mensagem bem precisa e um catálogo de deveres e proibições, válidos para todos os tempos e lugares. A história da Igreja seria construída de forma linear, sem altos nem baixos, serena como uma pedra. O zero seria o seu único número.

Não foi assim que aconteceu. Jesus abriu uma nova Era de criatividade. Não fechou a história dos povos e das culturas. As parábolas são contra a clausura do sentido dos gestos e das palavras. Todas, porém, encerram inesgotáveis possibilidades de construir a vida humana, individual e social, no horizonte da busca da felicidade, encontrando-a não só na alegria que se recebe, mas, sobretudo, na que se dá. Os Actos dos Apóstolos atribuíram a Jesus uma expressão incrível: há mais alegria em dar do que em receber. Nos Evangelhos já existia uma lei paradoxal: quem ganha (à custa dos outros), perde e quem perde para que os outros possam viver, ganha.

Vem isto a propósito de uma parábola sobre a reforma das diversas cúrias eclesiásticas: "Quando o espírito maligno sai de um homem, vagueia por sítios áridos, em busca de repouso e não o encontra. Diz então: ‘Voltarei para a minha casa, donde saí. Ao chegar, encontra-a livre, varrida e arrumada. Vai, toma outros sete espíritos piores do que ele e, entrando, instalam-se nela. O estado final daquele homem torna-se pior do que o primeiro. Assim acontecerá também a esta geração má." [1]

Ao ler e ouvir certas propostas para o Papa limpar o Vaticano, de uma vez por todas, lembro-me desta parábola. Bergoglio chegaria com toda a sua energia e, como grande inquisidor, punha na rua, de alto a baixo e de baixo ao alto, toda a gente do Vaticano e fechava-o para obras. Depois, usando da sua infalibilidade, povoaria aquele Estado só de gente santa e fiel. A sua infalibilidade seria o equivalente à inteligência artificial de robots.

De facto, continuou numa história de humanos, mas com o intuito incontornável de tornar tudo diferente. Não era uma renúncia à reforma nem uma cedência perante as resistências e oposições, de dentro e de fora da Igreja. Em vez de invocar a infalibilidade pontifícia e de pedir que lhe chamassem Santo Padre, optou por propor o estudo e a análise de todas as situações e considerou-se membro de uma Igreja sempre a reformar, feita de santos e pecadores. Situou-se sempre entre estes últimos. Nada disto significava um processo de inibição. Era uma nova forma de coragem: a Igreja não é minha, eu sou da Igreja de todos e eleito Papa para a Igreja de todos. Nem quero que ela continue na mesma, nem eu. Estamos na mesma barca de conversão.

Conhecia e conhece o que foram os trabalhos de Jesus com os seus discípulos. A glória do Crucificado não foi a de ter êxito, mas a de não trair, mesmo diante das piores ameaças.

Não estou a comparar o Papa a Jesus Cristo. Ele próprio acharia isso ridículo. Pretendo sublinhar, apenas, que o caminho seguido pelo Papa Francisco exige o envolvimento de toda a Igreja.

2. Não se pode negar que os adversários e opositores dos caminhos de Bergoglio, em relação à sociedade e à vida interna da Igreja, não o tenham ajudado a sentir a necessidade urgente de estudar métodos que responsabilizem toda a Igreja pelo seu futuro, como sinal e instrumento de transformação da sociedade. Igreja-Sacramento.

Estava a tornar-se perigosa uma convicção falsa e muito divulgada: a reforma da Igreja e das cúrias é uma utopia do Argentino desenraizado. Cresceu com ele e com ele morrerá.

Se havia muitos católicos impacientes com o silêncio dos seus bispos, outros, conscientes de que a Igreja é de todos, a responsabilidade pelo seu presente e pelo seu futuro não precisa de ser delegada. Alguns começaram a manifestar, de diversas formas, o que lhes ia na alma.

Entre vários textos, importa referir, pelo seu carácter colectivo, a carta da Conferência dos Baptizados/as [2] aos bispos da Igreja de França.

Destaco uma passagem onde existe um apelo à convocatória de um congresso, cujo objectivo seria, ao nível da França, “passar de uma participação facultativa e consultiva dos leigos – homens e mulheres evidentemente! – a uma presença efectiva nos locais de tomada de decisão, de acordo com modalidades a discutir. É o sacerdócio comum dos fiéis, o único citado no Novo Testamento que deve ser não apenas reabilitado, mas, no futuro, colocado no próprio centro de decisão”.

Em paralelo, considera que um "Concílio do Povo de Deus" é incontornável para rever, em profundidade, as relações entre sacerdotes e leigos, para reformular o ministério ordenado que, nas condições disciplinares em que é actualmente exercido, levou aos excessos que conhecemos [3].

3. Falta, em Portugal, um estudo sobre as atitudes e o comportamento dos católicos portugueses em relação ao Papa Francisco e aos seus desígnios. Conhecemos a clara posição do Nós Somos Igreja e de algumas personalidades. Entretanto, há novidades em curso para o governo da Igreja. No passado dia 18, o Papa publicou a constituição apostólica Episcopalis Communio (Comunhão Episcopal) com a qual reforça o papel do Sínodo dos Bispos, sublinhando a importância de continuar a dinâmica do Vaticano II.

O Papa tem o cuidado de sublinhar: apesar de se configurar como um organismo essencialmente episcopal, o Sínodo dos Bispos não vive separado do resto dos fiéis, mas pelo contrário deve ser um instrumento adequado para dar voz a todo o povo de Deus.

O Papa não é o diabo como os tradicionalistas pensam, nem vai deixar o diabo à solta na Igreja, como desejam. Como?

É assunto para o próximo Domingo.

[1] Mt 12, 43-45
[2] Conférence des baptisé-e-s, Anne Soupa, presidente
[3] Cf também Lettre au pape François de 31 Agosto 2018

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