Mar adentro, totalmente livre

Braço acima, braço abaixo, nadou e continuou a nadar. Não mais pararia, pensava. O mar sempre fora para ele sinónimo de liberdade e ele queria mesmo libertar-se de tudo.

O sol do fim do dia, vermelho escarlate, começou a descer sobre a costa, colorindo as nuvens e iluminando o mar. O sol do fim do dia desceu sobre aquela paisagem como se de um cenário de banco de imagens se tratasse, qual produto incluído no pacote adquirido por quem reservou estadia para, como se diz em linguagem moderna, viver uma experiência inesquecível.

O sol descia e ele, cada vez mais meditabundo, observava: a rapariga que multiplicava poses perante o telemóvel do namorado diligente; as adolescentes que repetiam sinais de vitória para a câmara até que o “V” surgisse exactamente como imaginavam; o pai que apontava o iPhone aos dois filhos, primeiro ela, depois ele, e ele a reclamar, “oh pai, não gostei nada das fotos que me tiraste ontem”; a mãe, a filha e o namorado desta a revezarem-se no enquadramento escolhido, cara séria abrindo-se em sorriso muito aberto, tão imensamente feliz durante aqueles segundos em que a posteridade online será assegurada. Enquanto isso, o sol paciente a seguir metodicamente o caminho de sempre, a água a brilhar com os seus últimos raios, as barracas e os chapéus-de-sol firmes e hirtos na sua função de figurantes.

Triste coreografia aquela, pensava ele. Uma azáfama em que todos ignoravam todos os que os rodeavam, em que pareciam ignorar até a paisagem que procuravam usar como moldura pronta a ser distribuída, com outros rostos no centro, por outros ecrãs.

Mais acima, no interior do restaurante, um velho reparou também no sol do fim do dia. Levantou-se e caminhou até à ampla porta envidraçada de chão a tecto. Não saiu para o exterior. Aproximou-se do vidro e, através dele, contrariando todas as regras básicas de fotografia, registou daquela forma para a sua posteridade o vermelho agora ainda mais escarlate do sol quase a desaparecer lá longe.

É provável que a fotografia do velho tenha sido a pior de todas as que se tiraram naquela tarde, ainda assim, caso soubesse do velho, é igualmente provável que ele sentisse que, entre todas, era aquela e só aquela que quereria ver.

Na praia, há longos minutos a observar aquela sucessão de sessões fotográficas e auto-retratos a céu aberto, tomou uma decisão. Levantou-se e, como sempre fazia, apertou bem os cordões do fato de banho, antes de caminhar até ao mar, passo a passo, como habitualmente. Depois, aumentou o ritmo da caminhada até que a água lhe chegasse aos joelhos. Molhou então os braços e a barriga para se ambientar à temperatura, seguindo o ritual que adoptara há muito. Lançou um último olhar às pessoas na praia e às suas coreografias, observou os toldos, os chapéus, as bóias e as raquetes. Viu o restaurante onde o velho já não estava. Virou-se e mergulhou.

Braço acima, braço abaixo, nadou e continuou a nadar. Não mais pararia, pensava. O mar sempre fora para ele sinónimo de liberdade — assim repetia para si mesmo — e ele queria mesmo libertar-se de tudo. Queria libertar-se de qualquer coisa vaga e indefinível, qualquer coisa que não conseguia nomear, qualquer coisa que era este tempo, o seu. Continuou mar adentro.

Foto
Nelson Garrido

Acenou efusivamente aos barcos de pescadores que iniciavam a faina nocturna, com os seus mastros iluminados a criar uma linha de luz levitando sobre a água. Viu as luzes em terra tornarem-se mais difusas enquanto a distância aumentava, e sentiu-se orgulhoso da decisão que tomara e do novo ser que seria, tão totalmente livre, tão diferente dos seus semelhantes, prisioneiros deste tempo.

Lá agora tão longe, acima das luzes da civilização em terra, o céu iluminou-se então com fogo-de-artifício de festas de Verão e ele comoveu-se perante a beleza simples do cenário. Tirou do bolso do fato-de-banho o telemóvel, protegido com capa impermeável, naturalmente, que ali esquecera quando decidiu caminhar convictamente praia fora. Fotografou uma e outra vez enquanto boiava na imensidão do oceano. Fotografou até que ficasse preservada em ficheiro electrónico uma imagem tão esteticamente impecável que ele não resistiu a partilhá-la com todos através das suas redes sociais.

Do outro lado do mundo, um homem que ao início da noite decidira embrenhar-se na floresta para não mais voltar, saturado com o mundo que dissera a si mesmo não ser o seu, descobriu no bolso dos calções um aparelho electrónico de que se esquecera quando avançou decidido para a floresta densa. Foi nele que viu a fotografia do fogo-de-artifício sobre o mar. Comovido, totalmente livre, não resistiu a partilhá-la com todos. Depois, aparelho electrónico no bolso, continuou a caminhada floresta adentro.

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