O pseudogolpe na procuradoria

Joana Marques Vidal devia ter sido reconduzida. Mas dizer que a sua não recondução é um golpe digno de uma quadrilha de malfeitores só pode vir de cabeças que sujeitam a interpretação do mundo à forma dos seus desejos e ao tamanho das suas ambições.

Acabou a novela da procuradora-geral da República e ainda bem. Já não havia paciência para o seu sentido dramático e ainda menos para o lado trágico que muitos quiseram dar ao dilema de substituir ou reconduzir Joana Marques Vidal. Uma normal e legítima opção do Governo e do Presidente da República tornou-se para alguns sectores da direita a prova acabada de que o regime sucumbiu com enlevo à praga da corrupção. Como se em causa estivesse a escolha entre a vontade ou a renúncia à salvação, como se não houvesse Ministério Público para lá de Joana Marques Vidal, como se uma escolha sujeita a interpretações do espírito da Constituição se resumisse a uma certidão de que o Governo, o Presidente, o Bloco, o PCP e uma boa parte do PSD de Rio estão empenhados em acariciar a corrupção e proteger os poderosos com o braço da lei.

Joana Marques Vidal deveria ter sido reconduzida no cargo porque, para lá de todas as fragilidades do seu mandato, acabou com os resquícios de uma Justiça burocrática e rendida aos encantos do poder tão bem cultivada pela dupla Pinto Monteiro-Noronha do Nascimento. Mas este reconhecimento do seu papel, esse tributo de gratidão que tanto Passos Coelho como Rui Rio lhe renderam não a pode transformar num ícone, na única arma ao dispor da Justiça para travar a corrupção dos políticos, banqueiros e demais poderosos. Há mais procuradoria para lá da ainda procuradora-geral. Portugal é, apesar de tudo, um país dotado de aparelhos institucionais suficientemente maduros para dispensarem o papel do caudilho ou dos salvadores da pátria.

A recusa em acolher essa evidência e considerar que a substituição de Joana Marques Vidal não é uma opção normal (embora discutível), mas uma cedência aos lobbies de poderosos ou à venalidade dos políticos é reveladora de uma arrogância moral intolerável e de uma menorização inaceitável do corpo do Ministério Público. O país deve muito a Joana Marques Vidal e o seu zelo e desempenho ficarão como uma referência para os próximos procuradores. Mas dizer que a sua não recondução é um golpe digno de uma quadrilha de malfeitores só pode vir de cabeças que sujeitam a interpretação do mundo à forma dos seus desejos e ao tamanho das suas ambições.  

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