Normalidade democrática

O que pode prejudicar Costa actualmente é Sócrates não ser condenado

Sejamos claros: Joana Marques Vidal poderia ter sido reconduzida no cargo de procuradora-geral da República, mas a sua substituição por Lucília Gago é uma decisão normal em democracia. Mais: a forma como decorreu é uma demonstração de que existe um regular funcionamento das instituições em Portugal.

É certo que a Constituição permite a renovação de mandato ao fim de seis anos. É também verdade que no acordo de revisão constitucional entre o PS e o PSD, em 1997, está escrito que a recondução é possível. Mas é bom lembrar que nesse debate de um lado estava o PS liderado por António Guterres, que então defendia a renovação de mandato do ocupante do cargo, e do outro lado estava o PSD, então defensor da limitação de mandato, liderado por Marcelo Rebelo de Sousa. É assim normal que aquele que é hoje Presidente da República aja em coerência com o que defendeu então. O que mudou foi a posição oficial do PS em relação a este assunto ao fim de mais de 20 anos.

E se a notícia da substituição de Joana Marques Vidal surpreende, depois de se ter criado a ideia de que poderia permanecer no cargo, é relevante a forma positiva como o processo decorreu do ponto de vista do que deve ser o normal relacionamento entre o Presidente e o primeiro-ministro. Do que é conhecido, a concordância entre ambos neste caso existiu em relação à decisão de substituir, ao método e ao timing de divulgação.

Ela foi tal que a própria Joana Marques Vidal veio clarificar que a hipótese da sua recondução nunca se colocou. E poderia ter havido atrito e tensão entre o Presidente e o primeiro-ministro em torno desta nomeação, como já aconteceu no passado. Basta lembrar o que o ex-presidente Cavaco Silva escreve no livro Quinta-feira e Outros Dias sobre o conflito com o então primeiro-ministro, José Sócrates, em 1996, quando da substituição de Souto Moura por Pinto Monteiro, o terceiro nome entregue pelo primeiro-ministro e então aceite pelo Presidente.

Além de demonstrar o regular funcionamento da democracia e das suas instituições em Portugal, este processo tem diversas leituras políticas. E um dos ângulos sob o qual deve ser visto é o das pressões políticas sobre os seus vários agentes. Não só o peso do caso do ex-vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, acusado pelo Ministério Público português dos crimes de corrupção activa, branqueamento de capitais e falsificação de documento, cujo processo acabou por ser enviado para Angola, como pedia a defesa, pelo Tribunal de Relação de Lisboa. Não deve ter sido, aliás, por acaso que o nome da nova procuradora-geral só é anunciado depois da viagem de Costa a Luanda. Há também a investigação sobre o desaparecimento de armas em Tancos, sobre a qual Marcelo pediu já celeridade.

E, claro, há a Operação Marquês que envolve Sócrates. É, porém, difícil de aceitar uma leitura linear de que Costa quisesse correr com Joana Marques Vidal para safar Sócrates. A investigação do Ministério Público está concluída e a acusação feita. O julgamento de Sócrates vai ser seguramente um factor de pressão sobre o PS, ainda por cima em ano eleitoral. Mas não é crível que o seja directamente sobre Costa, que desde o dia 22 de Novembro de 2014, quando Sócrates foi detido, enviou o famoso SMS qual serviço de cordão sanitário de protecção do PS. Mais: a tensão em crescendo entre ambos levou mesmo a que o Sócrates abandonasse o PS. Acredito até que o que pode prejudicar Costa actualmente é Sócrates não ser condenado.

Como disse, Joana Marques Vidal podia ter sido reconduzida. O que ela fez pela democracia em Portugal é imenso. Ao permitir que o Ministério Público se afirmasse em verdadeira autonomia e em clima de liberdade, mostrou que a Justiça pode ser igual para todos em Portugal e que não fecha os olhos quando os crimes são de corrupção e envolvem políticos. Disso é prova, por exemplo, a Operação Marquês, mas também a Operação Furacão ou os vistos gold.

É por isso que, como escreveu Ana Sá Lopes no editorial do PÚBLICO de sexta-feira, o desafio que se coloca a Lucília Gago neste mandato é imenso. Resta esperar para ver a nova procuradora-geral elevar ainda mais os padrões de exigência de um Estado de direito em Portugal.

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