O gato indecifrável

De noite há um gato misterioso que atravessa a praia: é o Sombra. Nunca ninguém o viu voltar. Como não sabemos como é que ele é, também não somos capazes de o reconhecer durante o dia, se é que o Sombra se passeia durante o dia.

Aqui em Sintra as estações frias chegam mais depressa. Já é Outono desde que os nadadores--salvadores foram para casa, no dia 15 de Setembro. O mar está diferente: mais verde, mais limpo, mais agitado.

As gaivotas enchem o areal em vastas conferências, viradas para todos os pontos cardeais, como se tivessem deixado de falar umas com as outras.

De vez em quando um cão lembra-se de as instigar a voar, mas elas esvoaçam um bocadinho de nada. É um ritual que começa a chateá-las. Já não é medo há anos. Estou sempre à espera da primeira vez em que elas se virem ao pobre cão, espetando-lhes os bicos estripadores de sardinhas.

De noite há um gato misterioso que atravessa a praia: é o Sombra. Nunca ninguém o viu voltar. Como não sabemos como é que ele é, também não somos capazes de o reconhecer durante o dia, se é que o Sombra se passeia durante o dia.

A princípio dizia-se que ia fazer as necessidades, como os outros gatos que preferem a areia da praia àquela que se tem de comprar. Mas então porque é que ficava toda a noite?

Não, o Sombra deve gostar de fazer caminhadas. Tem várias propriedades para inspeccionar, colegas por conhecer, constelações sob as quais gosta de dormir.

Uma vez vi-o caminhar calmamente entre um acampamento de gaivotas e nem uma se mexeu. Estão habituadas à marcha desinteressado do bicho. Sabem que tem outras coisas em que pensar. Já lá vai a imaturidade deliciosa de as assustar.

Os gatos gostam muito de praias, mas, ao contrário de nós, não suportam os cocós dos cães.

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