Melancolia em estado de final de linha

Adeus — 23 Separações Funestas e Outros Acidentes Naturais, de Luís Rainha, é um dos livros mais originais da literatura portuguesa publicados recentemente. Narrativas que de uma qualquer forma subvertem com prazer o cânone.

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Rui Gaudêncio

O livro esteve um ano à espera de ser publicado. Teve recusas de editoras por ser uma colectânea de contos. Editores houve que acusaram a recepção mas tão-pouco o quiseram sequer ler. Quem o diz é Luís Rainha (n. 1962), acrescentando: “Confessaram-no dizendo também que o motivo era tratar-se de contos. Parece que os contos não vendem.” Mas esta não foi a estreia de Rainha neste género literário: publicara antes 18 Palavras Difíceis (Tinta-da-China, 2012). Durante este tempo foi trabalhando a espaços num romance, que interrompia para alinhavar uma ou outra história. Por vezes, deixava-se ir levado por ela. Foi escrevendo, e a partir de determinada altura “estava completamente concentrado nestas histórias e neste livro”. Por circunstâncias da sua vida, por necessidade de lidar com sentimentos que o assombravam, confessa, a escrita “foi uma catarse”, pois entre outros efeitos ajudou a “aliviar o peso das emoções”. Adeus — 23 Separações Funestas e Outros Acidentes Naturais é um livro muitas vezes melancólico, mas de uma melancolia quase sempre em estado de final de linha, com humor, quase divertida, de onde já se avista o bonançoso porto.

Luís Rainha começou por estudar Engenharia Civil no Técnico. Chegado ao quinto ano resolveu parar para pensar se era a engenharia aquilo que queria fazer para o resto da vida. Neste hiato de hesitações e de dúvidas, foi “apanhado pela tropa” e teve de cumprir o serviço militar, então ainda obrigatório. Depois do ano e meio a marcar passo nas fileiras, e porque já “gostava muito de escrever”, teve a oportunidade de se iniciar na publicidade numa época feliz em que havia pouca concorrência — ainda hoje ganha a vida “a escrever anúncios”. Quisemos saber se a publicidade lhe influencia a escrita de ficção. Responde que não, que a “escrita de publicidade tem de ser sintética, inteligente, de um espectro muito estreito. Não tem nada a ver com a escrita de ficção. São as mesmas ferramentas, é o mesmo tipo de acção, mas é a mesma diferença entre pintar arcadas ou fazer pintura a sério.” Ressalva ainda o aspecto utilitário, o imediatismo, a recompensa rápida da escrita publicitária. Predicados que a escrita de ficção não tem. E exemplifica com o tempo que decorre entre a ideia e a aprovação de uma campanha e o momento em que esta chega ao público: “pode ser dois dias”. Já o livro demorou dois anos a escrever, à parte o tempo de procura de um editor que o aceitasse para publicação. O trabalho de escrita de ficção é-lhe demorado, e exige-lhe uma regularidade que nem sempre se ajusta à disponibilidade e à vontade. Depois há ainda todo o trabalho de reescrita, de burilar o que saiu em bruto — este trabalho cuidadoso, como quem escreve em jeito de montar uma filigrana, evidencia-se neste livro.

“Não gosto assim tanto de escrever [ficção]. É quase um sacrifício obrigar-me a fazê-lo regularmente”, afirma Luís Rainha. “Gosto da parte em que começo a depurar as coisas, e a reescrever. E depois ler aquilo e pensar: ah, é bom! Modéstia à parte [risos]. Tento impressionar-me a mim quando escrevo, espantar-me.”

A escrita de Adeus — 23 Separações Funestas e Outros Acidentes Naturais é ágil, trabalhada, original, tecida com o à-vontade de quem domina os efeitos estilísticos, e de certa forma a querer deixar transparecer a liberdade de quem conhece bem as regras para depois as poder transgredir, obtendo com isso um determinado efeito estético. Na conversa Luís Rainha sublinha mais uma vez as diferenças entre os dois tipos de escrita que pratica: “Na ficção faço o oposto, talvez para compensar a castração da publicidade”. E isso é notório não apenas no uso do léxico, mas também na agilidade em manobrar as formas narrativas canónicas, como se estivesse sempre presente uma vontade (e um prazer) de subversão. Um dos contos, titulado FAQ, é um bom exemplo dessa transgressão da forma canónica de contar uma história ao ser escrito apenas com perguntas e respostas — estas últimas escritas num registo que parodia algo entre a escrita jurídica e as respostas institucionais estatais em sítios na internet, como se pode ver nesta citação: “A literatura científica sugere a necessidade pontual de operações de infiltração cognitiva (Sunstein e Vermeule, 2009); dispersando informação normalizadora através de pequenos grupos informais, mas sem usar as estruturas oficiais de comunicação. Nenhuma acção será esperada da sua parte.” (pág. 95)

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Rui Gaudêncio

Um outro conto, Ibidem, sobre alguém que houve vozes, parte de um artigo (verdadeiro e citado) publicado na revista Newsweek em 2015, e ao longo da narrativa o autor vai remetendo o leitor para várias notas de rodapé, que por sua vez citam artigos, estatísticas, relatórios e livros de psiquiatria e psicanálise.

A corrosão da vida

Nem todos os contos que compõem este livro são separações amorosas em histórias que chegam ao fim. São antes relatos de corrosão da vida. E estes apresentam-se de várias formas: de deterioração de relações amorosas, de destruição de realidades, de doenças, de percepcionar outras também realidades, de descobertas que alteram vidas, de acontecimentos sem classificação — há em todos os contos um estilhaçar do real, um ir para além da fronteira em direcção a uma qualquer fuga. O livro abre com um dos contos mais inesperados — e que de imediato lhe dá o tom — Palimpsesto: em que um homem, a meio de uma noite de sexo, e depois de uma festa em que tomou uns químicos, se apercebe que a mulher que está com ele na cama não é a namorada, como ele pensava; mas esta tem o mesmo nome, apesar de fisicamente diferente. Os dias passam e ele apercebe-se que os amigos dela (que ele não conhecia) afinal também o conhecem. A realidade que ele percepciona está de tal maneira feita em cacos que nem a sua própria mãe, durante um jantar de família, se apercebe que aquela (para ele uma “estranha”) é outra mulher que não a habitual namorada.

Esta pluralidade de realidades, foi Luís Rainha buscá-la a vários autores de quem assume a influência. Uma delas foi Borges, mas apenas “no sentido em que pode haver uma realidade escondida algures e que nos está a escapar, que há realidades que nós não estamos a percepcionar”. Rainha diz ainda que, até aos quinze anos, se “alimentou” de ficção científica, da colecção Argonautas e de livros que “comprava no estrangeiro”. De entre os vários autores destaca J. G. Ballard e Philip K. Dick. Do primeiro menciona o gosto de escapar ao cânone formal da narrativa e lembra que em tempos, quando foi editor — a editora chamava-se Má Criação — pensou em publicar um livro que era só notas de rodapé de um outro livro supostamente desaparecido. Outro autor que menciona é David Foster Wallace — e refere em especial o conto Oblivion — e o facto de este se “revoltar contra a linguagem” naquilo que escreveu.

Na sua originalidade, Adeus — 23 Separações Funestas e Outros Acidentes Naturais tem também lugar para textos de uma escrita experimental, como sejam as narrativas Marginália e Errata. Ainda dentro da inovação formal: o conto Dia de Loucos constrói-se a partir do que parece ser um inventário de distúrbios mentais, e Vernissage estrutura-se como um catálogo de exposição em que o leitor tem de recorrer à leitura de um código para visualizar a obra de arte a que o texto se refere. A subversão de discursos jurídicos é a matéria para dois dos textos deste livro. Um ponto comum a todos: o sobressalto provocado no leitor. Esperemos pelo romance que o autor promete para dentro de um ano: em que duas possibilidades de história caminham paralelas.

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