Christian Rizzo desossou um tango (mas não para o tornar mais comestível)

Ad Noctum, o espectáculo que este sábado abre o festival Circular, completa a longa imersão do coreógrafo francês no mundo das danças anónimas de transmissão popular. E põe-no a enfrentar um tabu pessoal, o dueto – à sua heterodoxa maneira.

Foto
Marc Coudrais

Christian Rizzo teve sempre tanto medo do dueto que conseguiu passar 20 anos a escalar a paisagem coreográfica francesa (chegou mais ou menos ao topo em 2015, quando foi chamado a suceder Mathilde Monnier na direcção do influente Centre Corégraphique National de Montpellier, agora rebaptizado Institut Chorégraphique International) sem se aproximar uma única vez dessa forma absolutamente seminal que integra a experiência da dança desde tempos imemoriais, e que ao longo dos séculos se foi cristalizando em figuras canónicas como os minuetes das cortes europeias do Antigo Regime, os pas de deux do ballet clássico, os tangos, as valsas e os chachachás dos salões de baile – e os slows das pistas de discoteca que fizeram incontáveis vítimas ao longo dos anos 80.

Subentendemos, porque ele não desenvolve, que terá sido disso que o coreógrafo francês teve medo: dos protocolos obsoletos do dueto, da sua lógica binária incompatível com os múltiplos coming out que vêm tornando a identidade de género uma experiência tão mais caleidoscópica, e sobretudo das cascas de banana kitsch que já terá visto muito boa gente a pensar que conseguia evitar para logo a seguir se estampar ao comprido. Só que entretanto alguma coisa o fez querer enfrentar este e outros tabus pessoais, operação a que se dedicou consistentemente de 2013, o ano da estreia de D’après une histoire vraie, a 2016, o ano da estreia de Le Syndrome Ian. Entre o primeiro e o terceiro (e último) capítulo dessa “longa e reveladora aventura” que teve com as danças anónimas de transmissão popular, enfrentando primeiro o tabu de um elenco exclusivamente masculino para abordar o folclore, e por fim o tabu da sua própria história pessoal para abordar as práticas desclassificadas (ou mesmo clandestinas) do clubbing, Christian Rizzo encheu-se de coragem e atacou as danças de casal. Ad Noctum, o espectáculo com que abre este sábado, no Teatro Municipal de Vila do Conde, mais uma edição do Circular – Festival de Artes Performativas, é, diz ao Ípsilon dias antes de mais um regresso a Portugal, onde já veio mostrar as duas pontas da trilogia, o que acontece quando se tenta “desossar um tango”. Não exactamente, previnamos desde já, para o tornar mais comestível.

Um homem, uma mulher, uma máquina

Mais do que o miolo de uma investigação em torno do contágio entre as danças anónimas, vernaculares, e as danças de autor – “É uma dupla história, a da dança contemporânea: como na molécula do ADN, são duas hélices que se cruzam constantemente e que avançam em paralelo”, dizia Christian Rizzo há um ano, quando Le Syndrome Ian abriu a temporada do Teatro Municipal do Porto –, Ad Noctum é “de facto a sua peça central”. D’après une histoire vraie, levantada com um grupo de homens que se tornou “um verdadeiro bando”, tinha sido “uma experiência solar”, recapitula agora ao Ípsilon, e depois dela quis voltar à noite. Mas não à noite tal como sempre a conheceu – é o seu habitat natural, como o capítulo final da trilogia viria a explicitar, fixando em palco as quase três décadas que Christian Rizzo esteve acordado enquanto o mundo dormia (depois aprendeu a viver de dia, “e não é nada mau”…) –, e muito menos na sua companhia habitual.

A noite de Le Syndrome Ian, concretiza, era “a noite antes de o dia se levantar”. Aqui, “o dia nunca se levantará”: Ad Noctum é “a noite mental, absoluta, infinita” que Julie Guibert e Kerem Gelebek atravessam “como se fossem o primeiro ou o último casal a dançar” em toda a história da nossa existência enquanto espécie, vigiados por outro ser vivo, um monólito emissor de luz, som e imagens que tanto pode estar aqui para minar este dueto (não há sexo, mas de repente isto é um threesome) como para o engendrar.

Foto
Marc Coudrais

Por ser território escuro, e para ele totalmente desconhecido, Christian Rizzo não quis aventurar-se no dueto sozinho, e chamou dois bailarinos com quem já tem uma história (criou um solo para cada um, aliás: b.c. janvier 1545, fontainebleau para Julie Guibert; sakinan goze çöp batar, para Kerem Gebelek): “Queria ir para isto com pessoas que eu conhecesse bem e que me conhecessem bem: para podermos chegar todos mais longe, tinha de haver conhecimento e confiança. Mas já tinha muitas coisas antes de eles chegarem aos ensaios: aquela máquina, por exemplo, foi construída quando ainda não havia coreografia, porque muito rapidamente percebi que ia ter necessidade de um terceiro elemento que fosse simultaneamente um gerador e uma testemunha da dança que ali tem lugar.”

É uma dança que pode vir completamente dali, se acreditarmos no poder demiúrgico da máquina em que Christian Rizzo concentrou parte importante das vibrações de Ad Noctum, e à qual deu “uma protolinguagem” autónoma. Mas que vem seguramente também do tal tango que Christian Rizzo viu no YouTube e que se pôs a desossar – assim como de “todos os casais míticos do cinema clássico americano”, ou dos pares acidentais das danças de salão. Também eles, de resto, foram desossados: “Não queria explorar o tópico da sedução, que pode ser muito forte neste universo; queria sobretudo explorar as dinâmicas de escuta entre os dois elementos de um par. Portanto tratou-se de partir esse tango – podia ter sido um pas de deux, ou uma dança de corte – para depois o reconstruir a partir de um sistema que eu diria quase matemático.”

Questão decisiva, o tango que Christian Rizzo escolheu para desossar passa-se entre dois homens, subvertendo um cânone ferozmente heterossexual. Também aí Ad Noctum se mostra infiel à sua genealogia: não há papéis de género neste dueto, ou se há “são flutuantes”. “À medida que fomos avançando na observação dos sistemas da dança a dois, percebemos que há um ponto fixo entre dois corpos que é o ponto de rotação, seja no rock, seja na valsa. Todo o nosso desafio passou a ser dilatar e contrair sucessivamente esse ponto, deslocá-lo – e para esse efeito a discussão das questões de género não era de todo relevante.”

O final, fantasioso e inexplicável como todas as histórias vindas do princípio ou do fim dos tempos, tratará de o sublinhar: duas figuras gémeas, anónimas, sem rosto nem sexo, continuam a dançar numa noite escura. Não sabemos se vêm do passado, do presente ou do futuro, o que houve antes ou o que haverá depois: sabemos que esta história também é a nossa história, e que numa destas noites, apenas porque somos humanos, encontraremos um par e nos poremos a dançar.

Foto
Marc Coudrais
Sugerir correcção
Comentar