Humano, demasiado humano

Vinte e três anos depois da sua edição original em 1995, chega a Portugal a brilhante biografia de Garrincha, a história da vida de um dos maiores artistas que o futebol já conheceu.

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Garrincha era um alcoólico. Foi o que provocou a sua morte aos 49 anos. E foi por isso que Ruy Castro o escolheu Manchete

Quem atinge patamares de lenda no desporto deixa de ser homem. É um deus. Invencível, omnipotente, eterno, perfeito. É assim que as grandes “estrelas” desportivas ficam cristalizadas na memória colectiva. Nem sempre nos lembramos (ou nos queremos lembrar) das imperfeições. A degradação do corpo e da mente, os vícios privados, tudo isso parece escondido (ou esquecido) até a morte se apresentar. Com Mané Garrincha, tudo ficou à vista desde sempre, a sua genialidade como futebolista e os seus defeitos como homem. Não era um homem mau, era apenas um homem, o “anjo das pernas tortas” que tinha um dom faustiano para jogar futebol.

Vinte e três anos depois da sua edição original em 1995, chega finalmente a Portugal, com a chancela da Tinta da China, a brilhante biografia de Garrincha, Estrela Solitária, da autoria do jornalista brasileiro Ruy Castro, também ele o cronista das vidas de Nelson Rodrigues (O Anjo Pornográfico) e Carmen Miranda (Carmen), ou da história da bossa nova (Chega de Saudade). Sendo esta a história da vida de um dos maiores artistas que o futebol já conheceu, o futebol não foi a razão principal que aproximou Ruy Castro de Garrincha. E, quando chegamos à última página, percebemos que o futebol é quase circunstancial nesta história.

Garrincha era um alcoólico. Foi o que provocou a sua morte aos 49 anos. E foi por isso que Ruy Castro o escolheu. “A minha ideia era fazer um livro sobre alcoolismo, até pelo facto de eu ser alcoólatra (...). Quando tive a ideia de fazer um livro sobre Garrincha, não bebia há cinco anos. Como não sou ensaísta ou historiador, jamais seria uma coisa teórica, tinha de contar uma história. E imediatamente o Garrincha me veio à cabeça”, contava o jornalista brasileiro numa entrevista ao PÚBLICO em 2016.

Isto não quer dizer que Ruy Castro não liga nenhuma a futebol — liga, e muito, como ferrenho adepto de sofá do Flamengo, rival do igualmente carioca Botafogo, o clube dos melhores anos de Garrincha. E esse amor ao futebol também contribuiu para a dimensão pessoal que Ruy Castro transportou neste livro. Ele era uma criança que ligava ao futebol numa altura em que os brasileiros se livraram daquele “complexo vira-latas” de que falava Nelson Rodrigues e se estabeleciam como os intérpretes do melhor futebol do mundo. Castro viu Garrincha no Maracanã a marcar golos ao seu Flamengo, mas nem por isso deixou de o aplaudir.

Para este Estrela Solitária, Castro beneficiou da sobreexposição de Garrincha enquanto estrela do futebol e da selecção brasileira bicampeã mundial em 1958, na Suécia, e em 1962, no Chile, ao lado de Pelé, e, nessa condição, os seus vícios também foram públicos, sobretudo o álcool e o sexo. Uma ascensão absolutamente pública e uma queda igualmente pública. Mas esse trabalho de recolha só levou Castro até certo ponto. Depois, foi preciso conversar com muita gente — mais de 500 entrevistas, diz o autor, a 170 pessoas diferentes — para reconstruir a vida do craque com nome de pássaro.

Mais do que o trabalho exaustivo de recolha de informação, é o talento de Ruy Castro que nos leva de Pau Grande, a cidade onde Garrincha nasceu — “sua parteira, dona Leonor, foi a primeira a ver que ele tinha as pernas tortas” —, até à cama de um hospital em Bangu, onde morreu sem ninguém à volta, “uma estrela mais solitária que nunca naquela noite imensa”. Entre um e outro momento ficamos a saber, por exemplo, com quem Garrincha teve, aos 12 anos, a primeira experiência sexual. Foi com uma cabra. Depois, viriam as mulheres, centenas, quase todas sem nome, entre elas as mães dos seus 14 filhos, e uma delas Elza Soares, um dos nomes maiores (ainda hoje) da música brasileira.

Esta é uma viagem no tempo com meio século de duração através de homem que não chegou a ter esse tempo de vida, aquele que foi, como Castro lhe chama, o “futebolista profissional mais amador que o mundo conheceu”. Mas também o mais amado de todos, pelo menos pelos brasileiros. Há quem diga até mais amado do que Pelé, que foi exactamente o seu oposto, um miúdo também de origens humildes que se projectou para vida (tem 77 anos) e carreira longa graças à disciplina.

Garrincha, por seu lado, não gostava de treinar, não era um fanático de futebol e também não ligava muito a bens materiais — Castro conta um episódio em que Mané guardou dinheiro de um prémio de jogo dentro do colchão da cama das filhas e se esqueceu lá dele; quando o quis recuperar, as notas tinham sido destruídas pelo chichi das crianças. No fim da vida, já só queria dinheiro para sobreviver enquanto bebia. E chegou a recusar uma proposta milionária para ir trabalhar na Arábia Saudita porque era um país “seco”.

Garrincha foi um vencedor que perdeu várias vezes e continuou a perder para lá da sua morte. Senão, o que pensar de um homem que fez do drible uma arte, que fez do futebol uma alegria, mas que atropelou o próprio pai, provocou a morte da sogra (mãe de Elza Soares) num acidente de automóvel (dois dos seus filhos homens também morreram na estrada), e que morreu com o corpo destruído pelo álcool? O inferno de Garrincha foi ele próprio.

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