A redenção de Jason Pierce

O novo álbum dos Spiritualized está a flutuar na mais bela soul espacial.

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...And Nothing Hurt não observa a vida actual, cria o seu próprio cosmos

Por mais improvável que o exercício vos possa parecer, imaginem por um instante que toda a humanidade decidia ouvir ...And Nothing Hurt ao mesmo tempo; é seguro afiançar que a esmagadora maioria, ao fim de duas canções, desistia em favor de ver o último episódio de Pesadelo na Cozinha ou procriar um bocadinho; e em algum momento um melómano iria perguntar-se qual a relevância de um novo disco dos Spiritualized em 2018, um disco de um homem de meia idade, que outrora foi o futuro do rock, quando poderia estar a ouvir o hip-hop desvairado do falecido Mac Miller (paz para ti, puto) ou a pop de cartoon de Cardi B. Jason Pierce, que tomou demasiadas drogas e ainda por cima as erradas, já não tem nada para comentar acerca do estado do mundo — só do seu fígado.

O argumento tem tanto de certo como de inútil porque nem todos os objectos existem para representar o mundo que vivemos, iluminar a nossa consciência acerca do que nos rodeia. ...And Nothing Hurt não quer saber do mundo, tal como ele é — interessa-lhe o que poderia ser; não observa a vida actual, cria o seu próprio cosmos.

Vinte e um anos depois de Ladies and Gentlemen We Are Floating In Space ainda temos de falar em Ladies and Gentlemen We Are Floating In Space: saiu no mesmo ano de Ok Computer, dos Radiohead, tornando 1997 o mais extraordinário ano do indie rock — e também o último grande ano do indie rock: nunca mais as guitarras dominaram o mundo da invenção sónica, e hoje é um acto de coragem ou loucura um tipo afirmar-se melómano das guitarras indie: tal faux pas tem de ser imediatamente remediado com a confissão de que imitamos ao espelho as danças de Anita. Somos humanos, tentamos manter a credibilidade.

Ladies and Gentlemen We Are Floating In Space, disco que unia garage-rock e gospel, rock psicadélico, soul e free jazz, queria ser, apenas, tudo — e tornou-se a cruz do crístico Jason Pierce: a cada Amazing Grace atiraram-lhe à cara que já fez Ladies and Gentlemen; a cada Songs in A&E lembraram-lhe de Ladies and Gentlemen. E ainda agora, no momento em que oferece ao mundo ...And Nothing Hurt, temos de mencionar Ladies and Gentlemen.

E não devíamos porque ...And Nothing Hurt não tem a ambição de ser um disco-total — está mais próximo dos Tindersticks da fase soul, é um disco soul tal como a soul pode ser concebida por um louco megalómano da estirpe de Jason Pierce, não um disco soul para empernar, não um disco soul para a descarga lacrimal do amor perdido, antes um disco soul filosófico sobre o sentido disto tudo agora que Pierce chega aos 53 anos e começa a perceber que “isto tudo” terá consequências.

...And Nothing Hurt abre com a lindíssima A perfect miracle mas é com I’m your man, a segunda faixa, que anuncia verdadeiramente ao que vem: isto é soul, de metais opulentos e melodias açucaradas, soul filtrada pelos resquícios de heroína que ainda ficaram no corpo de Jason Pierce, tal como a estupenda Here it comes (the road) let’s go: uma melodia bonita de guitarra, metais, coros e dezenas de detalhes, de camadas e camadas de instrumentos e melodias em abraço quente.

Isto não invalida que ocasionalmente Pierce não fuja a esta espécie de ternura, que não abrace o seu lado rockeiro: On the Sunshine é a típica canção rockeira à Spiritualized: dispara logo a abrir, há uma slide a sublinhar a melodia, um órgão espacial, aquele tipo de crescendo em que nos viciámos há 21 anos, metais a bradar por todo o lado, um final louco e alucinado; argumentação que pode ser repetida em The morning after.

Já havia soul nos Spiritualized — mas talvez ainda não tivesse havido ternura. E é talvez isso que distingue ...And Nothing Hurt dos restantes discos dos Spiritualizes: enquanto antes havia um conceito (a canção total), agora, sendo a matriz a mesma, o primado é não é o do conceito — é o da beleza.

A beleza soul que encontramos em Damaged ou na sumptuosa The prize: “Gonna burn brightly/ for a while/ and then you’re gone”, canta Pierce, entre sinos, guitarras delicodoces e um órgão fúnebre. Lá pelos três minutos começa a ascensão: múltiplas melodias chegam-se à frente, os metais assomam, as guitarras fazem brado, os violinos sobem e o que aqui temos é, finalmente, o que ele procurou a vida toda: redenção.

O rock’n’roll está cheio de mitos — um dos quais é o da juventude, da novidade. Alguém diga aos garotos que Jason Pierce levou uma vida de pecado, drogas, rebeldia e uma constante procura de fuga deste mundo, e que aos 53 anos, pai de filhos, e já anos depois de sobreviver a duas paragens cardíacas e respiratórias, escreveu um disco que à morte (que, aqui, está por todo o lado) contrapõe a beleza.

Alguém diga aos garotos que o disco mais bonito deste ano é de um homem de 53 anos que viveu para aceitar que a beleza redime. Quem diria, Jason.

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