Nós, os vencidos do liberalismo

O rumo que Rui Rio está a imprimir ao PSD é altamente discutível, mas qualquer outro rumo seria tão ou mais discutível do que o seu.

Não tenho qualquer interesse em defender Rui Rio, até porque ele tem tiques autocráticos que me irritam deveras, mas há uma dúvida que me assalta: o montão de descontentes do PSD que todos os dias se mostra nos jornais tem assim tanta certeza quanto ao rumo que quer para o partido e para o país? E que rumo é esse, exactamente? É que nestas coisas dizer o que não se quer é fácil. Estabelecer aquilo que se quer é bastante mais difícil.

Boa parte do PSD não quer Rui Rio. Isso já percebemos. Mas o que é o oposto de Rui Rio? Passos Coelho? Saiu completamente esgotado e tem de fazer a sua travessia do deserto. Um novo representante do meu querido liberalismo, que a bem dizer sempre existiu mais no discurso de Passos do que na realidade? Ah, sim, magnífico, como seria lindo ter um líder do PSD capaz de defender menos Estado e melhor Estado, um regime meritocrático, o combate às portas giratórias e à promiscuidade oligárquica, reguladores atentos e fortes, a responsabilidade individual de cada português. Só há um pequeno problema com estes desejos: os portugueses não estão interessados.

É uma pena, mas é assim. Os portugueses não querem mais liberalismo. Quer dizer: muitos querem. Acredito até que são cada vez mais a querer. Mas ainda não são em número suficiente para formar um projecto político vencedor. E certamente não são em número suficiente para fazer do PSD o partido mais votado nas próximas eleições. É nesse sentido que a honestidade intelectual exige que admitamos isto: o rumo que Rui Rio está a imprimir ao PSD é altamente discutível, mas qualquer outro rumo seria tão ou mais discutível do que o seu. Sim, há um discurso liberal que eu gostaria muito que o PSD tivesse. Mas ele dá, com boa probabilidade, menos votos do que o discurso hoje-sou-de-esquerda-amanhã-viro-à-direita de Rui Rio.

Ainda há dias estava a ler um texto que citava Camille Paglia acerca da esquerda americana e da sua deriva identitária, alertando ela para a enorme contradição que é olhar para “o Governo como pai tirano” e depois exigir “que ele se comporte como mãe protectora”. Paglia falava dos Estados Unidos, mas aquilo pareceu-me uma descrição perfeita da relação dos portugueses com o Estado. O Estado português é em simultâneo o nosso pai tirano, que odiamos, do qual desconfiamos e que sempre tentamos enganar, e a nossa mãe protectora, a quem recorremos todos os dias e sem a qual não conseguimos sequer imaginar viver. Nesse movimento esquizofrénico sobra muito pouco espaço para os homens livres, que trabalham para construir um futuro que não esteja dependente de um Vieira da Silva a redistribuir com a mão direita aquilo que Mário Centeno tira com a mão esquerda.

Há uma intuição de Rui Rio que está correcta: os portugueses gostam de líderes teimosos e decididos, e por isso ele está-se bem nas tintas para os laranjinhas desencantados. Salazar, Cavaco, Sócrates, todos eles se alimentaram de uma cultura iliberal, pobre e medrosa. Muita gente pensou que essa mentalidade mudaria depois da troika e de Passos Coelho. Não mudou. A única razão por que os liberais tanto falam no diabo é porque sabem que não conseguem governar sem ele. Nós somos os vencidos do liberalismo. O país com que sonhamos só pode ser posto a andar no meio do pesadelo – e por isso, de cada vez que os portugueses acordam e lhes dizem (como António Costa) “está tudo bem”, eles viram-se para o lado, fecham os olhos e limitam-se a pedir que o pesadelo não venha outra vez.

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