Riscos globais e cisnes negros na política europeia

A sociedade europeia e a União Europeia em particular vivem estes episódios com especial acuidade.

As sociedades contemporâneas, no que diz respeito à gestão das suas expetativas e de alguns mecanismos de antecipação e prevenção, podem ser observadas de três ângulos distintos, mas complementares: os riscos globais e os seus efeitos não-desejados, as falhas de funcionamento, sejam de mercado, de estado ou instituições, os cisnes negros enquanto elementos fractais e disruptivos no alinhamento lógico das sociedades. A sociedade europeia e a União Europeia em particular vivem estes episódios com especial acuidade.

Na sequência do meu último artigo no PÚBLICO o sobre a ideologia do risco digital (24 julho 2018) regresso, agora, aos riscos globais (Beck, 2015) e aos cisnes negros (Taleb, 2011), no quadro e no horizonte da política europeia, para lá, obviamente, das chamadas disfunções ou “falhas de mercado, estado e instituições”, que não tratarei aqui, mas que são fundamentais no caso da União Europeia.

Os riscos globais

Em jeito de síntese, o movimento e o quadro sociológico do risco global podem ser expressos do seguinte modo: do risco localizado para o risco globalizado, do risco natural para o risco de origem humana, do risco concreto para o risco difuso, do risco efetivo e conhecido para o risco potencial e desconhecido, do risco circunscrito para o risco sistémico, do risco visível para o risco invisível, do risco divisível para o risco indivisível, do risco particular para o risco coletivo, do risco privado para o risco socializado, finalmente, do risco determinístico para o risco aleatório.

Entretanto, os riscos globais (RG) já têm a sua tipologia. O Forum Económico Mundial de Davos publica anualmente um relatório de avaliação sobre o “estado do risco”. A tabela seguinte dá bem conta do “campo de restrições sistémicas” que os riscos globais significam. O que esta tipologia nos revela, de mais assustador, é a natureza constituinte e estrutural dos riscos globais, uma espécie de “diabo à solta” que poderá, mais tarde, justificar o “estado de risco” em situações cada vez mais frequentes, intensivas e graves. Os ensinamentos e as boas práticas que podemos extrair desta tipologia são não apenas úteis para uma sociologia do risco global, mas, sobretudo, constituem uma excelente justificação para a formação da união política europeia, se quisermos, para justificar a construção de uma Federação Europeia dos Bens Comuns (Covas, 2013).

Tipologia dos riscos globais

A este propósito, já conhecemos algumas evidências. Os custos do risco global são incomportáveis para os Estados mais vulneráveis, o controlo do risco global é uma tarefa infindável. Por outro lado, o risco global tem uma elevada complexidade técnica e a lei não controla os efeitos externos do risco uma vez que a internacionalização e a distribuição do risco são matérias politicamente muito sensíveis que enfraquecem o Estado soberano. Esta é, também, a razão para fazer a transição da regulação estatal para uma governança do risco global (União Europeia) e tanto mais quanto, no limite, podemos precisar de uma nova teoria do direito para albergar, juridicamente, a distribuição dos riscos inerentes à sociedade contemporânea e a sua consequente judicialização.

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Aqui chegados, a União Europeia não tem ainda doutrina geopolítica, políticas comuns, uma teoria jurídica e judicial para lidar com os inúmeros efeitos de extra-territorialidade que estes riscos globais sempre ocasionam.

Os riscos globais e os cisnes negros

Se os riscos globais causam imensos efeitos extra-territoriais, o que dizer da eclosão inusitada de um cisne negro, numa circunstância em que os mecanismos de antecipação não funcionam ou funcionam de forma muito deficiente. Além disso, podemos estar na iminência de um estado de exceção, provocado por “guerras de risco” que visam a encenação da violência e a sua legitimação.

Hoje em dia, devido ao risco sistémico, é muito raro eclodirem os cisnes negros em estado puro. Sabemos, porém, que eles podem emergir em algumas áreas mais sensíveis.

Em primeiro lugar, não temos ainda good global governance para regular a globalização económica, comercial e financeira. E agora ainda menos com a “doutrina Trump” sobre comércio global. Tudo pode acontecer, em qualquer altura, basta apenas uma boa fonte de ignição. Temos, assim, um risco sistémico elevado devido à sensibilidade dos fatores de propagação, que não está ao alcance das sociedades nacionais resolver e que só uma Federação Europeia, agindo em nome dos Estados nacionais, está em condições de enfrentar.

Em segundo lugar, por falta de governança global assistimos ao regresso em força da geopolítica e dos riscos que lhe estão associados, por causa da água, dos solos, dos alimentos, da bioenergia, da biodiversidade, mas poderíamos acrescentar a segurança dos abastecimentos energéticos, o apoio ao desenvolvimento, as correntes migratórias, os vários tráficos clandestinos de mercadorias e o terrorismo internacional que os suporta. Quer dizer, temos riscos geopolíticos elevados, ampliados pela arquitetura do sistema de relações internacionais pós-guerra fria e pela emergência do 2º mundo, que só poderão ser adequadamente apreciados e administrados por uma Federação Europeia dotada de meios próprios substanciais.

Em terceiro lugar, por falta, ainda, de governança global, sabemos que os riscos globais alteram a mobilidade de pessoas, plantas e animais e, portanto, a geografia humana, a geografia da produção e a ecologia agrária e, também, novos problemas de saúde pública devido à propagação dos vetores que transportam os micro-organismos transmissores. Assim, temos a porta aberta para todo o tipo de desastres ambientais, dos mais impressivos (nucleares, biológicos e químicos) aos mais pessoais (a multiplicação de vários tipos de febre e gripe), a justificar, mais uma vez, a legitimidade de uma Federação Europeia dos bens comuns.

Em quarto lugar, os riscos sociais são elevados onde germina a iliteracia do risco global, o discurso técnico-científico dissimulado e/ou simplista, a retórica política de minimização, a falta de contraditório acreditado, em suma, onde prevalece uma cultura de emergência sobre uma cultura de prevenção do risco. Neste contexto, está criada uma cultura do medo para fazer germinar o cisne negro e a manipulação daí decorrente. Mais uma vez, a Federação Europeia é a sede apropriada para acabar com a cultura do medo e para restabelecer a verdade da justiça e da ética sobre uma cultura de emergência.

Em quinto lugar, os riscos tecnológicos são o “paradoxo preferido do capitalismo”, o problema e a solução ao mesmo tempo. Para o capitalismo o problema é a dose. Esta é a razão pela qual a definição do risco científico e técnico é um problema calculado, probabilístico, de risco previsível. Todavia, um erro involuntário ou um “cientista louco” e teremos a eclosão de um cisne negro. Mais uma vez, os progressos em matéria de espaço comum de investigação e desenvolvimento são um passo importante, mas, apenas, um primeiro passo no campo imenso de possibilidades que está ao alcance da Federação Europeia dos bens comuns.

Chegados aqui, julgo poder afirmar, com segurança, de que um dos fatores de legitimação da Federação Europeia, no próximo futuro, a sua imagem de marca, terá muito a ver com a doutrina e a prática do problem-saving (o investimento em prevenção de baixo custo deve prevalecer sobre uma despesa por danos e reparações de custo elevado) e do problem-solving (o risco moral e o benefício do infrator devem ser privatizados e internalizados). Finalmente, a “revolução dos bens comuns” terá de provar que é possível comprometer dois conceitos nucleares, até agora muito divorciados pela teoria dominante: de um lado, a competitividade, como problema privado, que exporta risco moral e custos externos sobre terceiros, de outro, a sustentabilidade, como problema público, que é uma obrigação de todos nós (a socialização do prejuízo) e se resolve com mais imposto e despesa pública.

Prevenir, medir, remediar, adaptar e compensar todos estes impactos é uma tarefa gigantesca, mas estes choques específicos de grande amplitude revelam-nos, ao mesmo tempo, a urgência de uma política europeia de prevenção e gestão de riscos globais que, só por si, já justificaria uma União Europeia de atributos e características federais.

Os cisnes negros da política europeia

Os cisnes negros nascerão no seio destas culturas de risco, umas vezes mais complacentes outras vezes mais displicentes. Todavia, e em bom rigor, já não há cisnes negros em estado puro, todos os exemplos apontados já são conhecidos, podem eclodir a qualquer momento e apenas se desconhecem o alcance e gravidade dos seus impactos. Eles são provenientes maioritariamente da área geopolítica. Aliás, muitos destes cisnes negros já ensaiam os primeiros passos do que pode ser designado como uma verdadeira coreografia geopolítica. Vejamos alguns desses exemplos:

  •  Na iminência de um “Hard ‘Brexit’”, aumentam as divisões internas e é a própria unidade do Reino Unido que fica posta em causa com a reivindicação de uma reunificação das duas Irlandas e de um referendo sobre a independência da Escócia. O efeito dominó sobre a política europeia é imediato e desencadeia divisões internas profundas e graves de radicalismo regionalista e separatista.
  •  O espectro de uma guerra generalizada no médio oriente entre xiitas e sunitas é cada vez mais real devido ao alinhamento e confronto de dois eixos ou alianças: o eixo xiita com o apoio da Rússia e o eixo sunita com o apoio de Israel e dos EUA. O efeito dominó sobre a política europeia é imediato e desencadeia divisões internas profundas e graves no que diz respeito â política de defesa e segurança da União Europeia e seus respetivos alinhamentos geopolíticos.
  •  Os quatro “Países de Visegrado”, a saber, a Polónia, a República Checa, a Hungria e a Eslováquia, devido a reformas políticas internas que os aproximam de regimes políticos iliberais, devolvem as ameaças e advertências da União Europeia e pedem a renegociação dos seus termos de adesão.
  •  A reeleição do Presidente Trump (mas, também, a sua destituição) para um segundo mandato já não é propriamente um cisne negro, mas as guerras comerciais que abre um pouco por todo o lado ameaçam desmoronar o sistema multilateral criado por iniciativa americana a seguir à segunda guerra mundial. A União Europeia fica impotente perante o desmantelamento do sistema multilateral e adota a mesma prática americana dos acordos bilaterais o que desencadeia alinhamentos muito diversos entre países.
  •  A Rússia invade novamente a Ucrânia por razões de segurança fronteiriça, ou, mais grave ainda, invade a Lituânia para proteger o seu enclave de Kaliningrado situado entre a Polónia e a Lituânia; estes países invocam o artigo 5º da Nato que faz apelo à solidariedade dos estados membros, mas em resposta os EUA adotam uma atitude quieta e passiva. É o caos no sistema de defesa e segurança da União Europeia.
  •  A República Islâmica da Turquia abandona de vez as negociações de adesão à União Europeia e em jeito de retaliação começa a libertar os primeiros refugiados que detém no seu território, não obstante o imenso apoio financeiro da União Europeia aos campos de refugiados; abre-se, assim, uma imensa caixa de pandora no que diz respeito à política migratória mais recente da União Europeia. É o caos na Grécia e nos países balcânicos que aproveitarão para acelerar a sua entrada na União Europeia (Macedónia, Montenegro Albânia e Kosovo).
  •  A invasão de Taiwan pela China ou, ainda, uma política mais musculada nos mares do sul da China que, mais uma vez, mostra a enorme fragilidade das relações transatlânticas no que diz respeito à solidariedade no seio da Nato e, bem assim, no seio da União Europeia, onde a Alemanha é fortemente criticada pelo seu baixo orçamento de defesa e segurança que troca frequentemente por relações comerciais de conveniência; este facto estará na origem de um profundo mal estar franco-alemão.
  •  A repetição da crise da “cadeira vazia” no diretório franco-alemão (ausência do Presidente Macron) motivada por alterações profundas no governo alemão e na política europeia da Alemanha pós-Merkel. As relações preferenciais comerciais da Alemanha com a Rússia e a China e os seus contínuos excedentes comerciais e orçamentais não são do agrado do Presidente Francês. A União Europeia está à beira do abismo, a França ameaça sair da zona euro.
  •  A Grécia entra em incumprimento (default) depois de ter aplicado três programas de assistência financeira e prepara-se para solicitar a sua saída da zona euro, protestando contra a zona euro que, por causa dos excedentes alemães, se transformou numa zona marco; o baixo crescimento económico, as despesas de defesa e segurança por virtude das correntes migratórias e as relações muito tensas com a Turquia justificam esta atitude face ao “Grexit”. As opiniões nacionais dividem-se face ao perdão de dívida ou à conversão da dívida grega em dívida perpétua.
  •  Multiplicam-se na União Europeia os ataques cibernéticos e as fugas de informação são constantes; depois das eleições americanas e do referendo sobre o “Brexit”, os ataques aos sistemas de segurança europeus sucedem-se a um ritmo vertiginoso e as denúncias revelam que os ciberativistas apoiados por países terceiros desencadearam uma autêntica guerra fria cibernética. A política de defesa e segurança da União Europeia revela-se impotente para contrariar esta tendência.

Nota Final

Com se constata, os riscos globais e os cisnes negros são provenientes maioritariamente da área geopolítica (outros haverá) e muitos deles têm origem nas mesmas causas, a saber: o fim do ciclo neoliberal da globalização e a falta de integração e liderança políticas na União Europeia. No primeiro caso, o Trumpeconomics é o melhor exemplo, no segundo as disfunções da zona euro e o esgotamento do diretório franco-alemão são dois bons exemplos. Talvez o sinal mais impressivo da atual situação seja o fim de linha da germanização da Europa e o esgotamento próximo do diretório franco-alemão. No plano político-simbólico não gostaria que o próximo cisne negro fosse a “crise da cadeira vazia”, tal como o General De Gaulle em 1966, mas esse gesto seria, também, um ultimato e significaria que a atual zona euro precisa de ser profundamente alterada sob pena de pôr em causa todo o projeto europeu. No resto, os cisnes negros escolhidos revelam, em toda a sua extensão, as enormes fragilidades da atual política europeia: baixo crescimento e baixa convergência económica, por um lado, uma política externa e de segurança comum de 2.ª linha e inteiramente à mercê dos movimentos dos outros atores da cena internacional, por outro.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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