A água encontra sempre o seu caminho

O sistema que propomos é muito bom. E é uma reforma honesta do sistema eleitoral, a única que é possível realizar.

A reforma eleitoral apresentada pela SEDES e pela Associação por uma Democracia de Qualidade (APDQ) obedece a um único programa: a Constituição. Mais concretamente, a proposta visa aplicar o sistema aberto pelo artigo 149.º, desde a revisão de 1997. É só isso.

Lá está que importa assegurar o sistema de representação proporcional, pedra angular do sistema desde as constituintes de 1975. Lá estão os círculos plurinominais, elegendo vários deputados, como temos hoje. Mas, ao lado, lá estão também os círculos uninominais, elegendo um só deputado por cada. Onde é que estão, que não os vemos? Anunciados há 21 anos, onde estão esses círculos uninominais? Lá está, ainda, a complementaridade entre plurinominais e uninominais. Para quê? Para, independentemente dos dois canais de eleição dos deputados, garantir sempre a representação proporcional pelo método de Hondt. E lá está também (aqui, desde a revisão de 1989) a possibilidade de um círculo nacional, que pode melhorar a garantia da proporcionalidade parlamentar. E onde está ele, 30 anos passados sobre ter sido previsto?

O Estado, os poderes do Estado, os partidos, têm olhado esta questão como se fosse sua, exclusivamente sua. Não é. Esta questão não é dos eleitos; é dos eleitores. Esta questão não é tanto do Estado; é principalmente da sociedade. Esta questão não é dos designados representantes; é dos que querem ser bem representados. É uma questão dos cidadãos

Vinte anos à espera da reforma legislativa que a revisão constitucional abriu é tempo de mais. São mais de cinco legislaturas a marcar passo. Por isso, a SEDES e a APDQ decidiram dar um novo pontapé de saída, com a determinação de concretizar as esperanças abertas pela Constituição. A Conferência realizada no passado dia 12 de Setembro, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, serviu esse propósito, que será continuado, nas próximas semanas, com a apresentação de uma petição com o projecto de lei reformador. Vamos recolher o apoio dos cidadãos, levar um texto legislativo à Assembleia. Vamos mostrar que é possível dar sequência à Constituição – em vez de fazer de conta – e que é fácil e justo fazê-lo. O sistema que propomos é muito bom. E é uma reforma honesta do sistema eleitoral, a única que é possível realizar.

Nós queremos escolher o nosso deputado ou deputada, a par de escolhermos o partido que preferimos. Queremos deputadas e deputados responsabilizados, independentemente de serem eleitos uninominais ou em listas plurinominais. Queremos quem nos preste contas. Queremos deputadas e deputados com voz própria, capazes de obedecer mais aos eleitores do que aos chefes ou aos grupos, grupinhos e grupetas. Queremos uma democracia de cidadania, uma democracia de qualidade.

A Constituição diz mais. O artigo 48.º garante que “todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos”. Sim, tomamos parte na vida política – poucochinho, mas tomamos. Já o resto parece uma brincadeira, por força da decadência contínua do sistema. Participamos na direcção dos assuntos públicos do país? Como!? Directamente? Onde!? Por intermédio de representantes livremente eleitos? Quem!? Como? Onde? O regime passou a ser o de “comer e calar”, sem uma palavra pelo cidadão, que vota, mas limitado a escolher o menos possível. É esta a doença que importa tratar.

Já o artigo 108.º quase dá vontade de rir, se não fosse o tema mais sério da vida colectiva. Diz: “O poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição.” Quando revemos mentalmente tantos casos chocantes e consecutivos de corrupção, desmandos de gestão, enormes desperdícios de recursos, os caminhos que levaram o país até à berma da bancarrota, é a hora de fazer a pergunta: o poder político pertencia ao povo? O poder político pertence ao povo? Não. O poder foi capturado por grupos e interesses, numa oligocracia instalada que nos entretém, enquanto desfruta. Por isso, o que temos de fazer: libertar o sistema, restituir a democracia à cidadania. As duas coisas funcionam ao mesmo tempo: quanto mais separarmos a democracia da cidadania, mais o Estado fica amarrado aos seus captores; quanto mais amarrarmos a democracia à cidadania, mais liberto fica o Estado de captores.

O projecto de lei que temos praticamente pronto corresponde a uma versão mais avançada do documento de Janeiro passado, fruto de debates que fomos realizando. Encontrámos a solução para não ser necessário um círculo plurinominal comum das Regiões Autónomas. Açores e Madeira terão não só os seus círculos uninominais, mas também círculo plurinominal próprio a cada uma; e, ao mesmo tempo, no Continente, reduziram-se os casos de necessidade de agregação interdistrital para compor os círculos plurinominais.

É um sistema de representação proporcional personalizada, com excepção dos quatro deputados da emigração, cuja eleição se mantém como está. É um sistema que, no território do país, contém os três tipos de círculos previstos na Constituição – plurinominais, uninominais e nacional –, assegurando liberdade de escolha e proporcionalidade da representação parlamentar. É uma reforma significativa na cultura política de participação, mas num modo de transição do sistema actual. O número de deputados é definido pela votação plurinominal de cada partido em cada circunscrição; e os vencedores uninominais são os primeiros a serem providos nos lugares conquistados pelo respectivo partido na mesma circunscrição. É um sistema que, através de um duplo voto no boletim, dá aos cidadãos o direito fundamental de realmente escolher: o partido que prefere; e o deputado que quer. Tão simples quanto isto. O eleitor vota livremente e elege um Parlamento com as proporções justas e composto por deputados que realmente escolheu ou influenciou de modo determinante. Os partidos ficarão melhores. Não será exagero dizermos: a democracia renascerá!

Na SEDES e na APDQ, assumimos, como cidadãos e perante o resto da cidadania, o mandato do artigo 109.º da Constituição: “A participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático.” E queremos efectivar a definição do artigo 147.º da Constituição: “A Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses.” Queremos isso. A sério.

Na Conferência, foram muitos estimulantes as palavras do Presidente da República, assim como os comentários dos professores António Barreto, Maria Lúcia Amaral e Vital Moreira. E o painel dos partidos, embora, com excepção do PS, a maioria fosse contra a reforma nesta linha, não nos desanimou. Antes confirmou que este é o tempo da cidadania e importa falar forte. Fossem os partidos a favor e a reforma estaria feita, em vez dos 21 anos de bocejo e procrastinação que nos deram.

Este é o tempo de agir. Afinal, a água encontra sempre o seu caminho. Por mais adversas que sejam as condições do solo, por numerosos que sejam os obstáculos, por acidentado que seja o terreno, a água encontra sempre o seu caminho, chega sempre ao seu destino. Se a mobilização cívica se levantar, a reforma será feita.

Sim, não tenho dúvida, a democracia pode renascer. Podemos reencontrar o sentido de votar.

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