A cultura de morte herdada da Guerra Civil explica a Transição e o “esquecimento”

Por trás da democratização da Espanha em 1977-78 está a memória de uma matança que inspirou uma reconciliação negociada e sem ajustes de contas. Quarenta anos depois, as mentalidades mudaram. O “pacto de esquecimento” deixou de ser necessário. O ditador já pode ser removido do Valle de los Caídos.

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O túmulo de Franco no Vale dos Caídos JUAN MEDINA/EPA

A memória das guerras civis demora gerações a apagar-se até se tornar um simples capítulo da História. Pensando nas guerras carlistas do século XIX, o antropólogo Julio Caro Baroja observou que seriam necessárias pelo menos sete gerações para que desapareça definitivamente a recordação política e sentimental de uma guerra civil. Quem diria que, nos Estados Unidos de 2017, rebentaria uma “guerra de memória” a propósito da remoção de estátuas e símbolos dos confederados na Guerra da Secessão (1861-1865)?

A Espanha não cessará, por muitas décadas, de ajustar contas com o passado. A Guerra Civil Espanhola (1936-1939), mais do que a ditadura franquista, é a chave dos conflitos sobre a memória. Foi ela que modelou a Transição política espanhola de 1977-78.

A decisão de remover os restos de Franco do Valle de los Caídos é um acto de elevado valor simbólico e que ainda divide a opinião pública. As sondagens indicam que uma maioria de espanhóis seriam favoráveis à exumação mas discordariam da sua oportunidade — “há assuntos mais importantes”. Os números variam. Mas o sentimento dominante parece ser a indiferença. O debate público é de “baixa intensidade” se comparado com as polémicas suscitadas pela Lei da Memória Histórica do governo socialista de José Luis Zapatero, em 2007, e pelas iniciativas do juiz Baltasar Garzón.

Quatro décadas depois da Transição o debate está a mudar de terreno. Houve uma mudança de gerações e de sensibilidade. Durante a Transição, e ainda hoje, a sociedade recorda mais a guerra do que os 40 anos de franquismo que se seguiram. Foi a memória da Guerra Civil, com meio milhão de mortos e, sobretudo, a barbárie generalizada, que está na génese da Transição e de uma política de reconciliação baseada num “pacto de esquecimento”. Disse na época Marcelino Camacho, o líder sindical comunista: “Com podíamos reconciliarmo-nos, nós que tínhamos andado a matar-nos uns aos outros, se não apagássemos esse passado de uma vez por todas?”

Este pacto foi mais tarde qualificado de “amnésia colectiva”. E os males da democracia espanhola, não muito diversos do resto das democracias ocidentais, passaram a ser em grande parte atribuídos a uma transição imperfeita que não procedeu à depuração dos franquistas nem fez justiça às vítimas. Os historiadores lamentarão o acordo para destruir na documentação policial as fichas pessoais. Era, no entanto, uma medida de prudência das oposições.

A Transição

É preciso voltar à Transição. Explicou há anos, numa entrevista ao PÚBLICO, o historiador Manuel Pérez Ledesma: “A guerra civil é o modelo do que não se deve fazer. Sobretudo para conseguir uma transição. Com a morte de Franco [1975], a sociedade e os políticos preocuparam-se em fazer uma democracia. Além da ideia de ‘guerra nunca mais’, pesou o sentimento de que, na guerra civil, ‘todos fomos culpados’.” Eram ideias dominantes na população e não apenas nas elites políticas.

A guerra sempre esteve presente na mente dos espanhóis. Num inquérito 1991, 68% dos inquiridos concordavam com esta frase: “O que ocorreu na Guerra Civil foi tão horrível que é melhor esquecê-la do que falar dela.” E 75 % concordavam com a afirmação: “A recordação da Guerra Civil sempre esteve presente, sobretudo nos começos da democracia, porque ninguém queria que tal voltasse a acontecer.” E, para 56%, ainda “sobrevivem muitos ódios pessoais relativos à guerra”.

Falar em “amnésia” é um salto mortal. Depressa surgiu uma vaga de publicações sobre a Transição e, depois, sobre o franquismo. Para lá dos jornais, houve séries televisivas de grande impacto. Pouco a pouco, uma nova historiografia iluminava a Espanha contemporânea. As mitologias franquistas volatilizaram-se. Mas também o campo republicano teve de assumir a sua parte de responsabilidade na tragédia.

O “modelo espanhol” da transição negociada, entre franquistas e a oposição, tornou-se num modelo para a transição do comunismo na Polónia e, a partir dela, para outros países do Leste, influenciando depois as transições na América do Sul e na própria África do Sul. O polaco Adam Michnik qualificou-a como “a maior realização do século XX”. O esquecimento encobria o desígnio dominante de construir uma democracia e “fundar um país novo”.

A Transição foi iniciativa de parte da elite franquista, representada por homens como o primeiro-ministro Adolfo Suárez, contra outra parte dela que concebia uma transição cosmética para manter a sua hegemonia. Esta era representada por Manuel Fraga Iribarne e outros ministros de Franco que fundaram a Aliança Popular (AP). No congresso de fundação, em 1977, Fraga louvava a “obra do Generalíssimo” e propunha um “Estado forte, capaz de defender a ordem e os interesses nacionais da Pátria”. Em contraposição, Suárez criava um partido centrista, a União de Centro Democrático (UCD), rompendo com o passado.

Disse alguém que a Espanha que Franco deixou já não era de direita. O partido franquista foi aniquilado logo nas primeiras eleições democráticas em 1977: a AP esperava 25% dos votos e teve menos de 9%, atrás do Partido Comunista. A extrema-direita, da Falange à Força Nova, desaparecia da cena. Em 1978, os inquéritos do Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS) desenham um mapa político claramente dominado pelo centro e pela esquerda. Em 1982, o PSOE, de Felipe González, obtém a maioria absoluta. A direita só alcançará o poder em 1996, depois de o Partido Popular (PP) substituir a AP e aproveitar a fragmentação da UCD para fazer uma viragem ao centro.

Metamorfose da memória

Em 40 anos, mudou a memória. Nenhum dos actuais dirigentes políticos — Sánchez, Iglesias, Rivera ou Casado — tem memória pessoal do franquismo. É “a geração dos netos dos que viveram a guerra civil e o franquismo”. A política de esquecimento deixa de ser um instrumento da paz civil. Torna-se anacrónica. A maioria dos espanhóis, mostram os inquéritos, deixou de temer uma repetição da guerra civil.

Em Abril passado, um inquérito do CIS confirmou que “a melhor prova de que a figura de Franco se converteu num obscuro fantasma, que se dilui na memória das novas gerações, são os índices de apoio à democracia”, escreve o analista Carles Castro no La Vanguardia. Para 86% dos inquiridos, a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. Apenas cinco por cento admitiam um Estado autoritário “em certas circunstâncias”: ou seja, 20 pontos menos do que há três décadas. No entanto, metade dos espanhóis continua a referir que a ditadura “teve coisas boas e coisas más”.

A memória da guerra — escreverá em 2009 Pérez Ledesma — abandona “a ficção da responsabilidade generalizada e do ‘nunca mais’, para interrogar a responsabilidade específica de um ou outro bando”. Se a barbárie foi desencadeada pela guerra, importa saber quem foi o responsável pela eclosão do conflito. O trabalho da História deita por terra a tese franquista de que “o levantamento militar foi um movimento preventivo perante a ameaça de um golpe comunista”.

A Arte de matar

A nova historiografia confirma a barbárie nos dois campos inimigos, bem testemunhada durante a duração da guerra. Mas não pode ser estabelecida uma equiparação. Jorge M. Reverte, jornalista e historiador militar, explica no livro El Arte de Matar (2009): “Produziu-se em Espanha uma matança que não é o resultado inexorável da acumulação de ódios durante muitas décadas. É uma matança que tem carácter estratégico, marcadamente político. Sem ela os planos de Emilio Mola, Sanjurjo, Franco e o resto dos generais implicados não poderiam ir avante.”

Os primeiros a enfrentar o pelotão de fuzilamento foram 16 generais que não aderiram — “que no son compañeros” — entre eles La Puente Bahamonde, primo direito de Franco. Para Mola, o mentor do golpe de 18 de Julho de 1936, tratava-se de “semear o pânico”: os golpistas não podem falhar e devem abater milhares de pessoas nos primeiros dias da rebelião. Todas as forças, da Falange à Guarda Civil, são mobilizadas para matar. “Não é uma violência que surja do ódio de classe. É uma violência que parte da razão, da fria razão prática do golpe que deverá triunfar a todo o custo.”

Os anarquistas de Barcelona também tinham planos de “extermínio”: de religiosos, militares e burgueses. Em Madrid e outras cidades, o Governo republicano perde o controlo da repressão. “A Espanha vê-se imersa numa orgia de sangue que durará meses. A violência da reacção contra a violência da revolução.”

Franco e Salazar

A diferença entre as transições políticas em Portugal e na Espanha começa na sua forma: um golpe militar que origina uma vaga revolucionária e uma transição negociada. É o que vai determinar duas vias distintas de democratização. Para Portugal, a decisiva diferença de fundo é a ausência de feridas de uma guerra civil. Começa também aqui a distinção entre salazarismo e franquismo.

Escreveu o PÚBLICO (1 de Setembro) a propósito da exumação de Franco: “Portugal enterrou o salazarismo mais facilmente porque Salazar impõe-se na sequência de um golpe militar e não como epílogo de uma guerra civil que matou centenas de milhares de espanhóis.”

Em Portugal, resume Valentim Alexandre em O Roubo das Almas. Salazar a Igreja e os Totalitarismos (1930-39), “em parte por pressão da Igreja, criou-se um regime caracterizado por um tipo específico de repressão, relativamente incruento, mas fortemente opressivo, visando a conformação dos costumes e a supressão das inovações, que cobriu o país como uma capa de chumbo.”

O que caracteriza o franquismo das primeiras décadas é ter mantido a cultura da morte da guerra civil: perto de 50 mil de pessoas foram fuziladas. A última vingança foi a execução do comunista Julián Grimau, em 1963 — 24 anos depois do fim da guerra.

Sobre Franco observou Perez Ledesma: “Dizem que era irresoluto nas operações militares ou muito prudente na substituição de ministros. Há uma coisa em que nunca foi indeciso: assinar sentenças de morte. Nos anos 40, assinava-as tomando café.”

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