Pedrógão e o Governo que falha ontem, hoje e amanhã

É inexplicável que, numa matéria tão sensível, o Governo não tenha aplicado todo o seu empenho, toda a sua boa-vontade, toda a sua diligência nas operações de reconstrução e de reabilitação.

1. Os incêndios trágicos do ano passado ocorridos, a 17 de Junho e a 15 de Outubro, cavaram uma ferida profunda, que demorará muito tempo a sarar e que criou um “antes” e um “depois”. Estou certo de que todos os portugueses sofreram e foram solidários com o enorme sofrimento das vítimas – mortos, feridos, lesados – e das suas famílias. E estou igualmente certo de que os responsáveis políticos, administrativos e operacionais viveram de modo intenso e duro esses momentos de aflição, de dor e de desolação. Não está, pois, em causa a sensibilidade humana de todos os que tiveram de se envolver ou lidar com uma situação tão difícil e delicada.

Esta apreciação da dimensão humana não dispensa, no entanto, uma análise objectiva das circunstâncias, das responsabilidades colectivas e individuais ou das causas da ocorrência. Essa análise tem de ser efectuada por elementares razões de justiça e de prevenção, de resto, postuladas por aquele sentimento humano que acabo de evocar.

2. As notícias sobre fraudes e abusos nas operações de reconstrução e reabilitação são chocantes. Tornam-se, aliás, ainda mais chocantes, quando se pensa no esforço solidário dos portugueses, efectuado através donativos em dinheiro e até em bens. Tem, pois, de perguntar-se como, diante de uma tragédia destas proporções, pode o Governo ter-se desligado da garantia de que, nos trabalhos de reabilitação, não haveria abusos, aproveitamentos e oportunismos. Depois do trauma nacional que havíamos vivido e da impressionante resposta solidária dos portugueses, o Governo não podia falhar nem ser negligente ou indiferente. Tinha de estar no terreno, tinha de garantir que, sem prejuízo da urgência, estávamos perante uma operação de reabilitação absolutamente exemplar. As vítimas pessoais, os lesados patrimoniais e todos os portugueses que os ajudaram mereciam essa diligência do Governo, mereciam essa exemplaridade do processo de recuperação.

3. Poderia pensar-se que esta negligência, esta indiferença, esta falta de zelo no processo de reconstrução seria uma falha isolada. Mas infelizmente, não. Se olharmos ao Fundo de Solidariedade que foi mobilizado pela União Europeia e que se destina expressamente à reposição das lesões patrimoniais sofridas pelas populações e pelas comunidades, o comportamento do Governo está em linha com esta “indiferença” ou “desatenção”. Mais de metade da verba disponibilizada – mais de 26 milhões de euros em 50 milhões – foi consignada a despesas “burocráticas”, quase de “gabinete”, sendo desviado do seu verdadeiro propósito e finalidade. Em vez de ser afectada à reposição de bens efectivamente perdidos nos incêndios, seja por pessoas, seja por instituições (aí compreendidas entidades públicas), foi atribuída a serviços do Estado, independentemente dos bens que estes hajam perdido naqueles fogos. À luz das regras europeias, muitas destas afectações devem ser ilegais e até, em alguns casos, discriminatórias. Mas seja como for, atendendo à finalidade da verba e ao espírito da sua disponibilização (expressamente assumido nos regulamentos europeus), esta decisão do Governo é imoral, gravemente imoral – tal como sublinhou a seu tempo o presidente do PSD. Ou seja, o Governo, tal como alguns dos que espertamente se habilitaram a “reconstruir” casas, aproveita “abusivamente” a tragédia para se fazer pagar de algumas despesas. Que moral tem o Governo para censurar esses cidadãos abusadores, se até ele aproveita verbas de reposição para fins não previstos, ainda que remotamente relacionados?

45. Pode este padrão de comportamento do Governo nos trabalhos de reconstrução, reabilitação e reposição surpreender? Infelizmente, não. Como preparou o Governo a época de fogos de 2017? Com evidente leviandade, como ficou amplamente atestado pela substituição generalizada, tardia e apressada dos comandos territoriais na protecção civil. Como actuou o Governo e a cadeia de entidades que chefia diante dos alertas reiterados de graves riscos meteorológicos, seja antes dos fogos de Junho, seja antes dos fogos de Outubro? Com uma inusitada passividade e desatenção, desde logo, sem fazer nenhuns avisos à população. É hoje manifesto que, nessa altura, o Governo actuou precipitadamente e sem o cuidado devido, o que acabou por ter influência na capacidade de reacção e resposta ao deflagrar dos incêndios. Estes descaso e impreparação demonstram que, antes mesmo daquelas duas tragédias, havia uma séria ligeireza e negligência governamental. Diga-se, aliás, que, ao longo de 2018, foram muitos os atrasos e inúmeras as confusões e peripécias na área da protecção civil, com reflexos óbvios na terrível desorganização que pautou a resposta aos fogos de Monchique. Enfim, o descaso continua.

5. Finalmente, entre Junho e Outubro de 2017, no período que liga as duas tragédias, o conformismo e a soberba do Governo foram ostensivos. Seguramente documentados na indisponibilidade da então ministra para se demitir, assumindo uma responsabilidade objectiva; simbolicamente traduzidos no abalo para férias do primeiro-ministro. Mas se Pedrógão é imperdoável, a repetição da tragédia a 15 de Outubro, depois de denúncias e alertas sistemáticos, é um pecado imprescritível.

Em parcas palavras, o Governo falhou “antes”, o Governo falhou “durante”, o Governo falhou e continua a falhar “depois”. Fracassou no “ontem”, no “hoje” e no amanhã”. É inexplicável que, numa matéria tão sensível, o Governo não tenha aplicado todo o seu empenho, toda a sua boa-vontade, toda a sua diligência nas operações de reconstrução e de reabilitação. É incompreensível que, depois de tudo isso, o Governo não tenha querido fazer da superação da tragédia um caso de estudo e uma operação exemplar. Depois dos fogos, depois dos mortos, ainda temos de lidar com fraudes, com abusos, com aproveitamentos públicos e privados. É triste. Em Pedrógão, o Governo falha ontem, hoje e amanhã. Com Pedrógão, o Governo não aprendeu nada.

   

           

SIM. Associação Comercial do Porto. Passou ontem a ser a sede portuguesa do Tribunal Permanente de Arbitragem da Haia. Disputas territoriais, comerciais e de investimento globais passam pelo Porto.

NÃO. Governo húngaro. Diante do voto do Parlamento Europeu, anuncia que só aceita acordos na política de migrações depois das eleições europeias, bloqueando a cimeira de Salzburgo de amanhã.

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