Justiça histórica

A propósito da trasladação dos restos mortais do ditador Francisco Franco.

Em Espanha, 43 anos após a morte do ditador Francisco Franco, finalmente o governo do PSOE de Pedro Sánchez propôs-se alterar o que muitos qualificam de uma anomalia – eu diria, aberração – num Estado democrático: isto é, um ditador sanguinário ser honrado num dos principais monumentos do país. Lembre-se só que, após liderar, em 1936, um golpe de Estado militar contra a República espanhola, que se transformou em guerra civil, o general Francisco Franco “comemorou” a sua vitória, em 1939, ao prender e executar tantos espanhóis do lado vencido, que o próprio Mussolini estranhou. Disse mesmo a Franco não entender como um “nacionalista” tinha morto tantos dos seus conterrâneos, adjectivadas pelos franquistas de constituírem a "anti-Espanha".

O historiador Paul Preston calculou que, entre 17 de Julho de 1936 e 1 de Abril de 1939, foram assassinados na retaguarda cerca de 200.000 homens e mulheres, enquanto pelo menos 300.000 pessoas perderam a vida nos combates. Além deste meio milhão de pessoas mortas, Preston enumerou os que sucumbiram às condições esclavagistas dos batalhões de trabalho e meio milhão de republicanos que tiveram de tomar o caminho do exílio. Um número desconhecido de homens, mulheres e crianças foram também vítimas dos bombardeamentos e dos êxodos que se seguiram à conquista de território pelas tropas de Franco.

Outra das formas de Franco comemorar a sua vitória foi ordenar a construção do monumento do Vale dos Caídos, em “honra” de todas as vítimas da guerra civil de Espanha, erguida com o trabalho escravo de presos políticos. Em 23 de Novembro de 1975, três dias após a morte de Francisco Franco, por vontade do governo de Carlos Arias Navarro, referendada pelo rei Juan Carlos, o corpo do ditador foi transladado para um altar no Vale dos Caídos. O governo de transição para a democracia de Adolfo Suárez e o primeiro governo do PSOE de Felipe González tentaram, sem o conseguir, “democratizar” o monumento. Em 2011, o executivo de José Luis Rodríguez Zapatero, do PSOE, sondou especialistas de várias disciplinas, que apresentariam um relatório, propondo transladar os restos de Franco do Vale e converter o monumento num museu da memória. Por várias razões, entre as quais se contou o facto de o PP de Mariano Rajoy ter ganho entretanto as eleições, nada foi feito.

Em Agosto de 2018, o novo governo do PSOE de Pedro Sánchez iniciou contudo o acto simbólico importante de exumação dos restos mortais de Francisco Franco do Vale dos Caídos. A via escolhida foi a de um decreto-lei, transformado em Lei, aprovado no dia 24 de Agosto no Conselho de Ministros, que deu 15 dias à família de Franco para reagir. O decreto foi aprovado pelo Congresso espanhol, no passado dia 13 de Setembro. A oposição da Direita política, do PP e dos Cidadãos, sem coragem para recusar o diploma, absteve-se, depois de ter optado por criticar a “forma” do mesmo e considerar “pouco democrática” a via do decreto, afirmando haver assuntos mais urgentes a tratar. Onde já vimos isto?

Muita negociação tem vindo entretanto a ser levada a cabo nos bastidores. Os sete netos e o bisneto de Franco já fizeram saber a sua determinante recusa em aceitar a transladação, recorrendo à Justiça. O único conflito poderia vir da Igreja, mas a Arquidiocese de Madrid já declarou acatar a ordem legal de exumação. Já quanto às Forças Armadas, tem havido alguma movimentação, devido a um manifesto de 181 militares, assinados por 700, enaltecendo Franco, ao qual respondeu um contra-manifesto que apenas obteve 30 adesões.

O contexto histórico espanhol é muito diferente do português, desde logo na forma como ocorreu o fim das respectivas ditaduras, por ruptura em Portugal, e devido a um pacto negociado em Espanha. Ao analisarem as transições para a democracia na Europa do Sul, conhecidas como fazendo parte do início de uma terceira vaga após a II Guerra Mundial, os politólogos Philippe Schmitter e Juan Linz assinalaram que as que se realizaram em Portugal e Espanha configuraram a tipologia comum dos processos de transição, a primeira como ideal-tipo do modelo de "ruptura" e a segunda "pactuada".

Conforme disse Timothy Garton Ash, a transição para a democracia em Espanha incluiu uma estratégia consciente de não afrontar nem “processar” o passado, através de um processo de "amnésia colectiva e voluntária", como a qualificou Jorge Semprún. As memórias traumáticas da guerra civil e o desejo obsessivo de evitar quaisquer repetições das violências levaram a que a maioria dos actores políticos e a sociedade espanhola a esquecerem o passado, na crença de que seria a única forma de conseguir a passagem pacífica para um novo regime democrático. Foi um modelo de “amnésia” – ou pacto del olvido –, embora, como se sabe, recalcar a memória traumática só faz com que esta surja em permanência, por vezes sob formas patológicas, impedindo o “passado de passar” e a vivência de um presente virado para o futuro. Lembro a célebre frase francesa "chassez le naturel, il revient au galop".

De qualquer forma, em Espanha, a "reconciliação" esteve então na ordem do dia. Por ocasião da sua coroação, em 25 de Novembro de 1975, o rei Juan Carlos I apelou à “concórdia” dos espanhóis, ao mesmo tempo que homenageava o Generalíssimo Franco e promulgava um indulto para delitos de "pertença a associação ilegal". A amnistia dos presos políticos foi, porém, recusada liminarmente pelo governo de Carlos Arias Navarro, aliás ex-director general da polícia política franquista, que teve a ideia de enterrar Franco no Valle dos Caídos. Só com a substituição deste, por Adolfo Suarez, foi aprovada na Câmara Baixa do Congresso a Lei de Amnistia 46/77, cujo objectivo era evitar qualquer processo judicial e a concessão de reparações materiais para os elementos da facção derrotada na guerra civil.

Na realidade, essa lei tornou impunes os principais violadores dos direitos humanos franquistas e constitui ainda hoje o principal impedimento para que a Espanha se confronte com o seu passado ditatorial. Não se enumerará aqui as diversas leis que tentaram proceder a reparações às vítimas da guerra civil do lado republicano e aos antifranquistas ao longo da Ditadura, mas deve-se dizer que, à Constituição de 1978, cuja chave é a Lei de Amnistia, voltou a presidir a desmemória e o espírito de impossível reconciliação. A substituição das gerações nos anos 90 do século XX constituiu um ponto de viragem no “pacto de silêncio”, que para uns teria terminado em 1995, no 20.º aniversário da morte do ditador, ou em 1996, com a comemoração do 60.º aniversário do início da guerra civil espanhola.

A quebra do "pacto do esquecimento" ter-se-ia também devido em parte à nova sensibilidade sobre direitos humanos a nível internacional relativamente a colocar um fim à impunidade das ditaduras. No final de 2000, foi criada a Asociación para la Recuperación de la Memoria Histórica (AMRH), com o objectivo de identificar as fossas comuns em que haviam sido enterradas as vítimas republicanas do franquismo e de contribuir para a abertura dos arquivos militares e policiais. O governo do PSOE de José Luis Rodríguez Zapatero, que viria a ganhar as eleições em Abril de 2004, criaria neste ano a Comisión Interministerial para el Estudio de la Situación de las Víctimas de la Guerra Civil.

Em 2005, uma lei aprovou a restituição à Generalitat de Catalunya da documentação confiscada pelo regime de Franco e a criação de um centro de documentação de História e Memória, concretizada no Centro Documental de la Memoria Histórica (CDMH), integrando o Archivo General de la Guerra Civil de Salamanca. Muito importante foi a Lei de Memória Histórica, aprovada, em 28 de Outubro de 2007, pelo Congresso dos Deputados e depois pelo Senado. Não só foram estendidos os apoios monetários às vítimas do franquismo e suas famílias, como se ordenou a retirada de todos os símbolos franquistas dos edifícios e espaços públicos, bem como a despolitização do Vale dos Caídos.

Foram consideradas "ilegítimas as condenações e sanções ditadas por motivos políticos, ideológicos ou de crença religiosa por tribunais ou órgãos penais ou administrativos durante a Ditadura", algo que ainda não foi concretizado. Algo que ainda não foi também conseguido foi a abertura – e estatização – de todos os arquivos da Ditadura. Não só continuam a não ser disponibilizados os arquivos da antiga Seguridad, polícia política da Ditadura de Franco, como – pior – os cerca de 27.500 documentos sobre a actividade política do ditador estão conservados na Fundação “Nacional” Francisco Franco (FNFF).

Trata-se de uma instituição privada, fundada pela viúva de Franco, em 1976, e presidida pela filha, até falecer em 2017. Ninguém sabe quando e como foi entregue a documentação à fundação, nem há nenhuma garantia da qualidade da catalogação, conservação e acesso do arquivo, que agora é livre. Nem sempre foi assim: por exemplo, o historiador britânico Paul Preston, não foi autorizado a consultar grande parte dos arquivos da Fundação, nos anos 80, impedimento que durou até 2004. Entre 2000 e 2003, o governo de Aznar investiu na digitalização dos fundos, que reforçou a anomalia, pois não entrou no Ministério da Cultura qualquer versão completa do material digitalizado. Também o CDMH de Salamanca apenas conserva uma versão parcial, pois inclui 27.357 documentos dos 27.490 figurando no inventário da FNFF.

O historiador espanhol Gutmaro Gómez Bravo assinalou que, entre a documentação de consulta restrita na FNFF está a documentação do relacionamento entre Hitler e Franco. Como exemplo de transparência de arquivos, deu o de Portugal, onde "tudo o que é relativo a a Salazar é de acesso transparente". Podemos dizer que o mesmo acontece com o Arquivos da PIDE-DGS. Em Portugal, no dia 27 de Abril de 1974, as forças do MFA ocuparam a sede desta polícia política e houve a preocupação de fazer um inventário global dos respectivos arquivos, que passaram para a guarda do Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e da LP (SCE da PIDE/DGS e LP), quando este foi criado.

Os arquivos da DGS na chamada metrópole passaram por diversas vicissitudes e os das antigas colónias africanas tiveram destinos diferentes, embora, exceptuando os de Moçambique, fossem remetidos para Portugal. Em 1982, os arquivos desta polícia foram colocados na dependência da Assembleia da Republica, que decidiu a sua transferência, bem como o espólio António Oliveira Salazar para os Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, vindo a ser consultáveis, com algumas restrições, a partir de 1994. No ano seguinte, foi aprovada a Lei n.º 20/97, de 19 de Junho, beneficiando em termos de segurança social e de pensões de reforma os opositores à Ditadura, sendo-lhes contado o tempo de prisão, exílio e de clandestinidade.

Não se analisará aqui a forma como foi derrubada, por ruptura, a Ditadura portuguesa, em 25 de Abril de 1974, às mãos de um golpe de Estado do MFA, que se transformou num processo revolucionário, qualificado por Philippe Schmitter "como uma das mais intensas e generalizadas experiências de mobilização das neo-democracias". Chegados aos dias de hoje, a aparência é que os governantes do antigo regime e os elementos da sua principal força repressiva não teriam sido tocados, o que no último caso não é totalmente verdade.

Em Portugal, a Ponte Salazar, em Lisboa, mudou oficialmente de nome, em Outubro de 1974, e alguns – poucos – nomes de ruas identificados com a Ditadura também sofreram modificações, por pressão popular e local. Revelador da falta de mobilização para o efeito da opinião pública é o facto de não haver locais de memória sobre a ditadura. Recorde-se que o Museu do Aljube apenas abriu as portas em 2015, o nome de Humberto Delgado foi dado ao aeroporto de Lisboa no ano seguinte e está programado um museu na antiga cadeia do forte de Peniche, após alguma controvérsia. A ausência de locais de memória foi, porém, compensada pela existência de importantes arquivos, que preservaram a memória, ao praticarem o esquecimento de "reserva" apontado por Paul Ricoeur, que é condição, tanto de uma memória pacificada, como da possibilidade de se proceder à análise e narrativa histórica, combatendo tanto a amnésia destrutiva, como a recordação obsessiva.

Na realidade, como diz Goethe "escrever a história é um modo de nos livrarmos do passado". E acrescentaríamos... e de nos livrarmos do passado infeliz, na medida em que, ao fazer o luto deste, o trabalho da História preserva a memória e contribui para pacificá-la e torná-la justa, condição de uma relação actuante com o presente e o futuro, bem como de solidariedade entre as gerações. O historiador Henry Rousso, numa conferência, proferida em 15 de Novembro de 2017, na Universidade Nacional de La Plata (Argentina), ao ser distinguido com um Doutoramento Honoris Causa, lembrou que a tarefa dos historiadores "deve contribuir para o que Paul Ricoeur denominou de memória 'justa'", que "constitua um factor de justiça e ao mesmo tempo nos pode libertar, para que não fiquemos prisioneiros do passado".

Historiadora

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